A “reforma” política e A Morgadinha dos Canaviais de João Jardim...
- Eu estou farto. Farto, tenho de fazer algo para pôr aquele tipo fora de jogo. Tenho de fazer algo... Macacos me mordam, ou eu não me chamo Sócrates, o engenheiro filósofo...
- (...) E isto já lá não vai lá com falinhas mansas nem com decisões à porta fechada...
- Ouça lá ó seu cubano, eu nã tenho medo nenhum de si. Nem de si nem dos cubanos aí do "contenente" que passam a vida a conspirar contra mim e contra o meu jardim..
- Por isso quero que vocês todos vão barda...
- Deixa-me mas é cá fumar cá mais uma cubano, enquanto tenho tempo....
- Ver em cena Alberto João Jardim (AJJ) é, para mim, um momento lúdico que nem sempre capitalizava quando ia ao circo, pela mão dos meus pais. Hoje, já não vou ao circo, mas o espectáculo continua a entrar-me casa adentro, via TV. A questão é a seguinte: perante a reforma (tímida) do sistema político que o novel governo do PS quer imprimir à sociedade portuguesa, a favor da limitação dos mandatos de cargos executivos, AJJ sentiu-se visado e resolveu apontar baterias para o seu próprio partido, chantageando-o como, aliás, é seu timbre. Costuma fazê-lo há décadas, quando procura “sacar” mais uns milhões para alimentar clientelas regionais e, assim, manter-se no poder por mais uma eternidade. No seu caso desde 1978, o que hoje contrasta com a lei do PS, que prevê um período máximo de mandatos de 12 anos, e não de 8 (2 mandatos) como seria desejável e saudável para a democracia portuguesa.
- São hábitos dinossauricos, reforçados pelo Carnaval, mostrando essa potencialidade do poder, com muita alegria e cor. Fê-lo com Cavaco, Guterres, Durão (com Santana não fez porque foi um equívoco meteórico) e, agora, fá-lo com Sócrates e, internamente, com L. M. Mendes. Ilustra-o quando diz: “vamos ver se a direcção nacional do PSD serve de bengala às pretensões do PS ou se tem aqui a sua 1ª atitude afirmativa e decente”. Pelo caminho invectiva o PR, a quem responsabiliza pelo “monstro em que se está a tornar o regime político”. Levando-o mesmo a afirmar que é ele (AJJ) e o povo da madeira que escolherão o momento de abandonar o pote de mel do poder. Enfim, o povo português já conhece este permanente “carnaval” e não liga.
- Todo este enredo pseudo-reformista, que deixa (irresponsavelmente) os deputados (vereadores e o mais) de fora, faz lembrar A Morgadinha dos Canaviais, o romance político de Júlio Dinis, sobre o liberalismo parlamentar, tendo como personagem central o deputado e conselheiro Manuel Berardo de Mesquita: proprietário absentista, Pai extremoso, homem de família, ingénuo, sincero e confiante. Na esfera mundana, homem do século, observador, sem pureza cristalina, mas não totalmente opaco e com um à vontade em toda a parte. Politicamente, um desiludido, mas atraído pela política. Militante e intransigente, quando conveniente, por vezes até contra o seu próprio partido. Trata-se, pois, de um contendor de muita força, mas acusado pela oposição de frouxo e tíbio.
- Ora é sobre esse “conselheiro” que recai o peso da responsabilidade política de toda a aldeia: conseguir verbas para a construção da estrada e do aeroporto, promover novos cemitérios e hotéis, comprar votos com promessas de emprego e alguns favores ocultos, e, já se sabe, apoiar os carnavais deste Portugal contemporâneo, que não passa duma grande aldeia, à beira-mar-mal-plantado. E mesmo ausente, o dito conselheiro – que passa a vida a ofender toda a gente que dele discorda – faz sentir a sua presença na repercussão dos acontecimentos que provocou. O tal começo da estrada, a licença para o hotel, a mudança de residência do representante da República, as ofensas, o terrorismo para com a oposição, o cuidado com imagem, o Carnaval, e o enxovalho permanente aos jornalistas e media em geral que pensam de modo diferente e não subserviente.
- De certa forma, o conselheiro Manuel Berardo de Mesquita faz lembrar A. J. Jardim, de boa e excelente alma, mas já corrompido pela política (que pratica desde os tempos da faculdade), que o afastava da aldeia, onde só ia durante as festas e as eleições, a fim de preparar a reeleição. Por vezes, especialmente em meios pequenos como as regiões autónomas da Madeira e dos Açores em que todos se conhecem – em que os factores e comportamentos rurais ainda prevalecem sobre as características da vida urbana.
- Em que os amigos de infância estão ligados por laços de profunda amizade que já vinham de muito longe – o comerciante com o ervanário, o padre com o lavrador, o homem dos correios com o professor, o presidente da Junta de Freguesia com o construtor civil local (o homem das empreitadas) – acabam, lamentavelmente, por ser sacrificadas em nome das questões de desenvolvimento que, não raro, são mais questões de interesse privado: o traçado da estrada que passa ao largo da farmácia, do café ou do ervanário; a localização do hotel e do restaurante que estraga os pequenos negócios de aluguer de quartos e de tascas já enraizados na aldeia, enfim, um conjunto de pequenas decisões que “mexem” com a vida das localidades e nunca diminuem o património dos políticos – ou seja, daqueles que desempenham a função de cargos públicos executivos com mandato legal – cuja finalidade é, sempre que possível, extrair dividendos políticos da tomada dessas decisões. E, ao mesmo tempo, deitar abaixo as políticas e o prestígio dos políticos da oposição que tudo fazem para os substituir no governo que desejam vir um dia a conquistar. Ora tudo isto se pratica sem que, a maior parte das vezes, se faça com ciência nem com a melhor economia – quer em termos de eficiência, quer em termos de eficácia na utilização criteriosa dos recursos do erário público que é, no fundo, esses “monstrinho” financiado por todos nós: contribuintes.
- É tudo isto que AJJ representa neste Portugal dos pequeninos, e que patente na proporção directa do alcance das reformas do PS. Será assim que o PS quer renovar a classe política, modernizando-a, tornando-a mais responsável e competitiva? Pura ilusão. Pois enquanto a “lei Jardim” no plano político-partidário procura erradicar um abcesso na democracia portuguesa que tem enervado secularmente o PS, é o mesmo PS, autor da lei, que revela tanta coragem como oportunismo e maleabilidade nesta decisão ad homine. Apanhando no crivo da lei só os titulares de cargos políticos do PSD e, maquiavelicamente, deixando de fora desse crivo político aqueles que lhe são politicamente próximos, i.é, os titulares de cargos políticos da área do PS. Eis um exercício de política pura aplicado a uma determinada realidade sociopolítica.
- A presente reforma política do PS, que não passa dum ameaço, afinal, não permite o rejuvenescimento da classe política, não aproxima os deputados das populações que directamente os elege, nem sequer previne que as velhas amizades não se traíam umas às outras, sabendo antecipadamente que é o elo mais fraca da cadeia aquele que sempre se sacrifica: seja no traçado da estrada, na localização do hotel ou do aeroporto, como assinalámos.
- Se virmos bem, Alberto João Jardim acaba por ser o bode expiatório nacional, um epifenómeno duma realidade mais vasta (se bem que oculta) do Portugal contemporâneo. Apesar de ser ele que, de certo modo, perde o cariz de representante de um status social para simbolizar só o homem político corrompido pela própria política, importando-se menos com a verdadeira justiça entre os homens da sua região e com as causas e os interesses das classes mais desfavorecidas e com a voz da consciência, do que com as suas próprias conveniências e timings políticas, pois sempre que o estado da majestade da opinião pública o pedia, lá estava João Jardim a vociferar, a ofender, a ridicularizar quando não a enxovalhar os seus correligionários bem como os da oposição que, segundo, ele, vivem em conspiração permanente para o liquidar. No fundo, o homem vive em psicose permanente e vê inimigos e fantasmas em todo o lado. Porventura, muitos deles gerados por si próprio.
- É do enlace destes dois enredos – os espasmos de AJJ e o oportunismo cirúrgico do PS de Sócrates – que encontramos no teatro político português um carácter sociopolítico que substitui as guerras laborais e sindicais de outros tempos. Chamar a isto uma reforma do sistema político é como dizer que a dupla Santana e Portas foi o melhor governo desde o 25 de Abril: uma gargalhada. Só que por baixo dela ficam por discutir os nossos problemas fundamentais: sociais, económicos e políticos, de educação e desenvolvimento. Será que ainda estamos no séc. XIX?
- Por vezes as reformas são como as revoluções...
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