Repensar o homem-massa
O homem-massa
O ano que finda deu-me uma lição: o Natal, além da troca de prendas e do aumento de peso, deverá servir para nos interrogarmos. Afinal, quem somos? Se se fizer um inquérito aos portugueses, porventura, responderão que ficam felizes com a teatrologia niilista: hedonismo e consumismo. Basta ir a uma grande superfície para ver quão envelhecida está a população lusa e fúteis são os hábitos das novas gerações: roupas, tabaco, dinheiro, imagem, êxito dão a foto deste novo relativismo que denota o vazio moral dos que têm materialmente quase tudo.
Este pode ser o perfil do homem-massa de Ortega y Gasset que tem ressonâncias políticas: no homem moderno feito à pressa, fala-barato, inábil nas metáforas, montado numas quantas abstracções que debita nos congressos, à saída das discotecas, igrejas e cemitérios. Será assim na Europa? Transitando da sociedade para a política – quem se vê, hoje, na vida pública que escape a este padrão asfixiante? Santana, P. Portas? Tudo neles é monótono. São homens esvaziados da sua própria história, são carapaças que carecem de um “dentro”, de um “eu”. Quando os vejo na TV penso que se tratam de actores sempre disponíveis de fingir ser qualquer coisa, só têm apetites, julgam só terem direitos.
É esta falta de nobreza de pensamento e de acção – que encontramos em Cavaco, Marcelo, Vitorino, Rui Machete, Ernâni Lopes - que me angustia. Será que é a política que esvazia o homem de sagesse? Como estamos no Natal perguntei a Deus a razão de tanta mediocridade política. Respondeu-me que Portugal vive uma fase passageira e que esse homem-massa no poder carece de projecto e anda à deriva. Civilizado é o mundo, mas o habitante do poder não é. Não constrói nada, apesar dos seus apetites enormes.
No Natal aprofundei os meus conhecimentos de psico-política e ao ver a entrevista do “Paulinho das feiras” à RTP, constatei a decadência em que mergulhámos: quando o homem-massa encontra em si a sensação de domínio e triunfo, convidando o próprio a afirmar-se tal qual é (com sorrisos amarelos para a câmara), só resta a sensação narcísica do exercício (patológico) do poder.
A angústia vai ao ponto de saber que temos quase 1000 anos de história e de fronteiras fixas, como diria Agostinho da Silva, e somos, perversamente, governados por meninos mimados e rebeldes primitivos, quais novos bárbaros. Mas são eles que no teatro político estão mais habilitados a serem dóceis e beatos, só para agradar (ao estilo do Alipiozinho, Conde d’Abranhos) ao eleitorado que os catapulta para o poder. Ora a civilização do séc. XX é que produziu o homem-massa, resultante da democracia liberal e da técnica. Que, por sua vez, nasceu da copulação do capitalismo e da ciência experimental que tem feito de Portugal um laboratório político.
Mas a imagem do espelho deforma: desemprego qualificado, atraso económico, incompetência e tráfico de influências, neocensura, enfim, Portugal tornou-se num cemitério de realidades humanas, numa buzina de misérias e o povo português num hospital de inválidos que apanha sol no Verão e reza no inverno para que a Primavera traga de novo a Sperança. O maior perigo é a continuidade política, com um Estado que depois de chupar o tutano à sociedade, ficará esquelético, morto com essa morte ferrugenta da máquina, mais cadavérica que a do organismo vivo.
A reflexão cristã serve, afinal, para pensarmos que tipo de homem político queremos a dirigir o País: o homem-light, entregue ao negocismo e aos lugares comuns, tudo lhe interessando, mas só a nível epidérmico e incapaz de fazer uma síntese; ou um homem tipo Cavaco, Marcelo ou Vitorino? É das entranhas desta realidade sociocultural que vai emergindo o homem-light que urge combater. Combatendo o materialismo, o hedonismo, a revolução sem finalidade, o relativismo e o consumismo.
É por essa gritante ignorância que alguns (ainda) ministros-móveis citam em conferências no Tivoli que o Conde d’Abranhos é o máximo: desconhecendo que o tipo era um oportunista sem escrúpulos e tinha vergonha do pai, frequentava os botequins de Vénus, consumia orchata publicamente, mas quando chegava a casa satisfazia a sua verdadeira inclinação, usando com largueza da garrafa de genebra que guardava debaixo da cama, no caixote da roupa suja.
Ora, é este Portugal que eu não quero.
- Reflexão publicada na revista Tempo
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