Auto-psicografia da crise - tributo a Fernando Pessoa
A actual globalização predatória, já banalizada, de difícil apreensão e obediente à lógica multicritério, generaliza, universaliza e torna iguais para todas as pessoas, empresas, sociedades, Estados e regiões as condições de governabilidade, viabilidade e de sustentabilidade dos projectos de desenvolmimento, já que permite e promove a comparação directa das competitividades entre aquelas diversas categorias. Dum lado o passivo da crise económica (descida do PIB, falências, desemprego); do outro a necessidade de recuperação da confiança, atracão de investimentos, aumento de riqueza, criação de emprego entre outros activos.
Assim, em lugar das tradicionais diferenciações através das cores das bandeiras nacionais e do traçado (sempre móvel) das fronteiras e da nacionalização das normas políticas, jurídicas e administrativas, passa a haver uma comparação directa entre os diversos centros competitivos. Sendo certo que as novas desigualdades, aferidoras das condições globais de desenvolvimento, se estabelecem entre competências profissionais e centros competitivos e já não entre capitais administrativas. O abandono predatório e dissimulado das “multinacionais de risco” (que governam em função da “ditadura dos mercados” pouco atendendo a razões personalistas) ante a impotência frustrante do governo, é um dramático exemplo.
O drama que esta realidade representa na sociedade portuguesa só encontra continuidade em piadas que actualmente circulam na Net, e que ajudam a clarificar algumas medidas governativas que aqui, ironicamente, sumariamos: a) o aumento do IVA é positivo porque a população portuguesa estava a engordar substancialmente; b) a redução do poder de compra leva a uma dieta globalizada, contribuindo para o bem-estar de todos; c) o fim do crédito bonificado é uma medida positiva, porque os jovens vão passar a pensar com mais calma no casamento, esse passo tão importante que muitas vezes acaba em divórcio e com os filhos a chorar; d) o aumento da gasolina é positivo, já que diminui a frequência dos passeios de carro, contribuindo para um ambiente mais saudável e, consequentemente, para uma redução da taxa de sinistralidade nas mortíferas estradas nacionais; e) o serviço público de saúde leva-nos cada vez mais ao auto-tratamento e auto-medicação, contribuindo para a cultura do país em termos de farmacologia e dispensa dos serviços médicos; f) temos, por outro lado, auto-estradas com portagens mais elevadas, contribuindo para o aumento do trânsito nas estradas nacionais (e secundárias) fomentando a difícil sobrevivência dos restaurantes e cafés de beira de estrada; g) a diminuição do n.º de funcionários públicos leva a que em cada instituição os funcionários possam trabalhar mais à larga, conversem menos de modo a que um funcionário passe a desenvolver o trabalho de três; h) a má figura no mundial de futebol é positiva na medida em que temos a possibilidade de dar a conhecer ao mundo que somos um país e não uma província espanhola.
Com estas medidas seremos muito em breve um país de gente elegante, com um bom planeamento familiar, sem poluição, sem sobrecarga dos serviços de saúde, com um serviço público eficaz e seremos, finalmente, independentes aos olhos do mundo, tal como Timor…
A propósito, passarão a ser emitidas pelo único canal público de televisão, todas as séries de humor constantes na tabela de programação da RTP2. O resto da grelha, como é do conhecimento de todos, não interessa a ninguém. Assim, todos os desempregados poderão ocupar o seu precioso tempo à frente de um televisor a assistir a um canal onde lhes será prestado um excelente serviço público de televisão.
Eis a autopsicografia da crise: seremos tudo isto, mas idosos e já não podemos “fingir que é dor a dor que deveras sentimos”, como diria Fernando Pessoa. E o mais grave é que tudo isto acontece justamente quando o Estado perde a sua (tradicional) capacidade para artificializar as condições de viabilidade e de sustentabilidade das actividades económicas e relações políticas (domésticas e internacionais) que será chamado a honrar perante compromissos assumidos com os dispositivos de segurança social que foram concebidos no quadro duma estrutura económica, demográfica e psicológica muito diferente da que existe hoje nas sociedades (ditas) avançadas.
Na última década os portugueses vestiram um dominó errado; conheceram-se por quem não eram e não desmentiram. Resultado: perderam-se com a máscara colada à cara. Hoje, envelhecidos e diante do espelho rachado, tentam tirá-la. Mas parece que estão “bêbados” (como o Estado), impotentes e sem saber vestir o dominó que nunca tiraram. E se a conseguirem tirar – a máscara – vão dormir no vestiário como um cão tolerado pela gerência à sombra duma qualquer “Tabacaria”…
É, em suma, na mutação destes processos políticos, sociais, psicológicos e tecnológicos que os novos desafios se colocam aos decisores. É também da sua articulação que estas realidades podem ser comparadas com o que aconteceu durante as primeiras fases da globalização.
Então, e não obstante duas guerras mundiais e 50 anos de Guerra Fria, parecia que as pessoas arranjavam emprego; não se endividavam tanto para comer, vestir e comprar casa; odiavam-se e desprezavam-se menos e não se matavam tanto umas às outras; e casavam-se mais cedo fazendo da instituição uma eternidade; e até tinham (mais) filhos. Seria por causa disso que pareciam mais felizes?!
À autopsicografia da crise deve suceder o esprit da Sphera, Spera, Sperança. Veremos se o mundo, o país e a vontade prospectiva da sociedade pode sonhar deixando-nos uma margem de criatividade para sermos sublimes, como o Poeta…
- Nota: este texto foi publicado em 2003.
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