quinta-feira

Evocação de A. Maria Lisboa - A metaciência da sua misteriosa poesia -

A. Maria Lisboa - sempre numa busca incessante de um futuro tão antigo como o passado.

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Projecto de Sucessão

Resultado de imagem para antonio maria lisboaPara o Mário Henrique 

Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua 
continuar deitado até se destruir a cama 
permanecer de pé até a polícia vir 
permanecer sentado até que o pai morra 

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária 
amar continuamente a posição vertical 
e continuamente fazer ângulos rectos 

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora 
por-se nu em casa até a escultora dar o sexo 
fazer gestos no café até espantar a clientela 
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia 
contar histórias obscenas uma noite em família 
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro 
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina 
deixar fumar um cigarro só até meio 
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias 
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se índias. 

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas" 
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Rêve Oublié

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas 
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim 
nesta minha mania de te dar o que tu gostas 
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti 

Agora na superfície da luz a procurar a sombra 
agora encostado ao vidro a sonhar a terra 
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba 
e depois matar-te e dar-te vida eterna 

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros 
continuar a viver até cristalizar entre neve 
continuar a contar a lenda duma princesa sueca 
e depois fechar a porta para tremermos de medo 

Contar a vida pelos dedos e perdê-los 
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada 
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho 
e depois contar um a um os teus dedos de fada 

Abrir-se a janela para entrarem estrelas 
abrir-se a luz para entrarem olhos 
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala 
e depois ruidosa uma dentadura velha 
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro 

E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata. 

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas" 

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Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite 
e um pequeno pássaro 

e depois longo tempo eu te perdi de vista 
meus braços são dois espaços enormes 
os meus olhos são duas garrafas de vento 

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada 
minhas pernas são duas árvores floridas 
os meus dedos uma plantação de sargaços 

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim. 

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"

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