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A vida de Sócrates na prisão: "Os Sopranos", "A Guerra dos Tronos", Philip Roth e Vassili Grossman

Nota prévia: Após um semestre de cadeia o sistema judicial português, demasiado centrado nas mãos dum juiz (que é falível), e por decisão do MP - este tenciona manter a liberdade de Sócrates cativa em regime de prisão domiciliária. Já é um progresso no plano do direito, liberdades e garantias. Mas não seria o que o "xistema" deveria ter feito ab initio?! Porque há indícios, mas as provas ainda estão por demonstrar, e o direito não se faz só com indícios. Seja como for, o ex-PM terá uma grande dificuldade de demonstrar que, com os seus cerca de 5 mil €uros de rendimentos como PM durante os seus dois mandatos - e não tendo uma herança suculenta que comprove rendimentos extra - como é que voaram para a sua conta, ou a de seu amigo (que funcionaria como alegado testa de ferro) cerca de 20M€. Seja como for, Sócrates já pagou, e está a pagar, pelas dezenas de agentes políticos CORRUPTOS que têm desfilado em Portugal - muitos dos quais ligados ao caso BPN (e aos submarinos!!!) e aos resíduos sólidos do cavaquismo (dias loureiro, arlindo carvalho, d. sanches e tutti quanti), até porque o BPN era o banco que servia para financiar as campanhas eleitorais do PSD, e não só... 
- Tudo isto constitui um desafio ao direito e ao sistema judicial em Portugal que ainda é como sabemos: casuístico, aleatório, selectivo e, por essas razões, dá escassas garantias ao cidadão comum de que ele é o feitor da verdadeira justiça em Portugal. 
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A vida de Sócrates na prisão: "Os Sopranos", "A Guerra dos Tronos", Philip Roth e Vassili Grossman, Expresso




O encontro decorre no Hotel Le Colbert, em pleno Quartier Latin, em Paris. É meio-dia. João Araújo, o advogado, explica a José Sócrates o que vai acontecer quando o ex-primeiro-ministro regressar a Portugal: “Vai ser detido. E provavelmente fica em prisão preventiva.” Propõe-lhe então um plano alternativo: iriam de avião até Madrid e ficavam lá durante o fim de semana. Depois, regressavam a Portugal no carro do advogado e, na segunda-feira, às oito e meia da manhã, apresentavam-se na sede do DCIAP “para prestar os esclarecimentos que fossem necessários”.
 A previsão de João Araújo não era propriamente mirabolante: o motorista João Perna e o melhor amigo de Sócrates, Carlos Santos Silva, tinham sido detidos e tinha havido buscas policiais a uma casa habitada por um dos filhos do ex-primeiro-ministro. A ‘Operação Marquês’ estava na rua e o cerco do Ministério Público e do procurador Rosário Teixeira era uma realidade difícil de negar.
José Sócrates demora dois minutos a decidir: recusa o plano do advogado com o argumento de que “um ex-primeiro-ministro não pode andar fugido”. E nesse mesmo dia — sexta-feira, 21 de novembro de 2014 —, apanha um avião da Air France com destino a Lisboa. João Araújo não consegue lugar no aparelho e regressa noutro voo.
A liberdade de Sócrates termina assim que sai do avião que o traz de Paris. Vem a falar ao telemóvel com um amigo e nem repara nos agentes da PSP e da Autoridade Tributária que o esperam à saída da manga e lhe dão ordem de prisão. Seguem-se três dias de interrogatório às mãos do procurador Rosário Teixeira, titular do processo, e de Carlos Alexandre, o temido juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal. 
Os dois magistrados concordam em quase tudo, até na prisão preventiva de Sócrates, indiciado por corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. O MP acredita que Sócrates foi corrompido enquanto era primeiro-ministro para beneficiar o grupo Lena. E que usou as contas bancárias de Carlos Santos Silva para movimentar dinheiro que era na realidade seu: 23 milhões de euros.
É a primeira vez que um ex-primeiro-ministro de Portugal é preso (ou quase, porque em 1922,  Liberato Damião Ribeiro Pinto, que chefiou o Governo entre novembro de 1920 e março de 1921, foi preso sob suspeita de desviar fundos da GNR) e os regulamentos das cadeias são omissos em relação ao destino que deve ter. Acaba por ir para Évora, para a cadeia dos polícias, onde em princípio estará a salvo de qualquer agressão ou problema mais grave. Chega na madrugada do dia 24 de novembro e recebe o número 44.
“Muesli não entra”

Às vezes, a melhor maneira de quebrar um homem é negar-lhe os prazeres simples. 6 de janeiro. A detenção do ex-primeiro-ministro tinha acontecido há menos de dois meses. Edite Estrela, velha amiga de José Sócrates, chega à prisão de Évora com um saco. Lá dentro, trazia muesli: “O Sócrates adora.” Mas assim como entrou, o saco teve de sair. Os guardas prisionais não a deixaram passar com os cereais. “Disseram-lhe que estavam a cumprir ordens e que os cereais não estavam na lista dos alimentos permitidos”, conta um amigo de Sócrates. Edite ficou revoltada. “Foi falar com o diretor do Estabelecimento Prisional manifestando a sua surpresa com o que se tinha passado. Não percebia como se proibia o muesli mas já se autorizava a entrada de pão, bolos e biscoitos.” 
A ex-autarca de Sintra, e uma das socialistas mais próximas de Sócrates — que horas depois da detenção do ex-PM escreveu no Twitter: “Qual a melhor forma de desviar as atenções do escândalo dos vistos gold?” —, ainda pensou levar a queixa ao diretor dos serviços prisionais, Rui Sá Gomes (secretário de Estado de um Governo de Sócrates), mas acabou por não o fazer. As burocracias eram muitas e o assunto não merecia “tantas diligências”, explica o amigo.
A verdade é que o episódio do muesli deu gás aos que defendem que Sócrates, além de vítima de um processo fabricado, é também vítima de um sistema prisional que atua contra ele. “O muesli sempre entrou na cadeia de Évora, mas quando eles perceberam que o Sócrates gostava muito, deixaram de o autorizar”, desabafa indignado um ex-dirigente socialista. “No dia 25 de dezembro eu levei-lhe os cereais, mas no dia 1 de janeiro já não deixaram o [Manuel] Pizarro entrar com o muesli. Disseram que eram as novas regras.”
Os dias de José Sócrates começam agora às oito da manhã com o bom-dia sonoro e regulamentar do guarda prisional que tem de verificar se está na cela e bem de saúde. É a hora do “conto”, quando todos os reclusos são contados e é verificado se não houve qualquer fuga durante a noite. O antigo secretário-geral do PS, o único a ser eleito com maioria absoluta, é então “aberto”, gíria prisional que significa que pode sair da cela de três metros de largura e quatro de comprimento onde passa agora todas as noites. O pequeno-almoço — café com leite, pão e fruta — é tomado no refeitório da cadeia, destinada a elementos das forças policiais caídos em desgraça. Sócrates é o único político do estabelecimento prisional e está sozinho na cela 3, que nunca teve de dividir com ninguém.  A cadeia tem capacidade para 35 reclusos, mas neste momento estão lá 50. Alguns têm de dividir a cela. Sócrates por enquanto não.
Depois do pequeno-almoço, o antigo governante, que perdeu peso e não deixou de fumar, dedica-se a quarenta minutos de jogging diário na companhia de vários reclusos liderados por um militar da GNR “com conhecimentos de preparação física”, conta uma testemunha que não quer ser identificada. Sócrates, que já correu em várias capitais do mundo, está agora limitado ao recreio da cadeia, que é aproximadamente do tamanho de um court de ténis. Cada volta não dura um minuto. Às vezes, Sócrates, benfiquista, joga futebol com os outros reclusos e até descreveu, chocado, a um visitante recente uma entrada “brutal” cometida contra Paulo Pereira Cristóvão, antigo inspetor da PJ e dirigente do Sporting, preso preventivamente sob suspeita de ter planeado uma onda de assaltos a residências.
A cadeia tem ainda um pequeno ginásio com uma bicicleta e um aparelho de remo “em muito mau estado”, que também é frequentado pelo ex-governante. Há um clube de tapetes de Arraiolos que só é frequentado por dois ou três reclusos.
As celas não têm chuveiro e o banho tem de ser tomado num balneário coletivo. A tarde é passada na cela ou no recreio e os dias acabam sempre à mesma hora: sete da tarde, quando todos os reclusos são fechados nas celas.
Tal como todos os outros presos, Sócrates é o único responsável pela limpeza da cela que ocupa desde 24 de novembro do ano passado. Tem um balde, uma pá e uma vassoura e todas as semanas, segundo o livro “Cercado”, de Fernando Esteves, é-lhe entregue uma embalagem de detergente para a faxina. O mobiliário é constituído por uma cama, uma mesa, um lavatório e uma sanita. A janela tem vista para o pátio.
Sócrates não tem uma relação especialmente próxima com qualquer recluso, mas também não é hostilizado por nenhum. Tratam-no por José ou senhor Sócrates. Os guardas prisionais são obrigados pelo regulamento a tratá-lo por senhor e pelo primeiro e último nome. No caso específico do ex-primeiro-ministro foi aberta uma exceção e chamam-lhe José Sócrates, apesar de o último nome ser Sousa.
“A vida não tem cura”

A maior parte do dia de Sócrates é passada dentro da cela. Está fechado 13 horas e passa o tempo a escrever e a ver séries de TV. As que os guardas deixam passar. É que também houve DVD barrados à entrada da prisão. Não por causa dos títulos, mas “porque os guardas alegavam que ele já tinha muitos na cela”, revela um dos ex-dirigentes do PS que mais vezes o tem visitado. De facto, a par dos livros, as séries tornaram-se um escape para o prisioneiro 44. “Ele gosta muito de livros e de séries.” “No outro dia levei-lhe três”, conta ao Expresso um camarada de partido. Quais? Já não se lembra (ou melhor, não quer dizer). Mas outro amigo do ex-governante revela que, entre as dezenas de livros que já leu, estão por exemplo “Pastoral Americana” e “Casei Com Um Comunista”, ambos de Philip Roth, e “Vida e Destino”, de Vassili Grossman. 
A preocupação de quem vai a Évora é levar alguma coisa. E que não haja presentes repetidos. Não se pode dizer que exista propriamente uma organização mas há uma combinação prévia sobre quem leva o quê: “Sabemos quem vai e falamos antes: ‘olha eu levo isto e tu levas aquilo’. A ideia é evitar que se leve as mesmas coisas.”
Na cela, Sócrates tem um DVD portátil e uma pequena televisão com um ecrã de 17 polegadas (“foram os serviços que disseram que tinha de ter aquele tamanho”). “Ele já viu todas as temporadas de ‘Os Sopranos’”, a série que conta a história do mafioso ítalo-americano de Nova Jersey, Tony Soprano, que costumava dizer “a vida não tem cura”. Mesmo preso, Sócrates não passa ao lado dos grandes êxitos da televisão: “Boardwalk Empire”, também sobre um mafioso; “A Guerra dos Tronos” e “True Detective”. 
Além das séries e livros, há quem lhe leve jornais, “alguma imprensa internacional” e filmes. Um dos seus amigos conta apenas que já lhe levou “um livro de poemas, de um poeta muito especial, que foram também escritos numa altura muito especial” e que lhe entregou ainda “alguns filmes com mensagens importantes”.
Mais do que ocupar-lhe o tempo, a ideia parece ser fortalecer-lhe o ânimo. Em novembro, o ex-PM contava ao Expresso que passava muito tempo a ler, tendo levado para a prisão um livro que trazia na mala, no dia em que foi detido à chegada ao aeroporto de Lisboa: uma obra de Hannah Arendt, filósofa judaica que estudou o nazismo e que fala sobre a “banalidade do mal”. Sócrates revelou ainda que pediu para lhe levarem para a prisão “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoievski, um dos clássicos da literatura mundial, escrito em 1879. Tendo então contado que pretendia “fazer uma iniciativa na prisão a propósito do célebre capítulo ‘O Grande Inquisidor’”. Esta ideia de Sócrates tinha um propósito óbvio, já que esta parte do livro de Dostoievski evoca a Inquisição e é um texto clássico sobre a liberdade e abuso de poder.
21 horas fechado

Sócrates faz de tudo para se ocupar. “Tempo é coisa que não lhe falta”. E as greves dos guardas prisionais não ajudam: “Já houve doze períodos de greve”, explica um dos mais próximos. Com os guardas em greve, os preventivos passam mais tempo dentro das celas. “Durante cinco dias eles estiveram 21 horas fechados por dia.” Sem visitas. Confinados às quatro paredes da cela. Só aos fins de semana puderam receber gente de fora, e mesmo assim “apenas uma visita da lista de sete pessoas que constam do registo inicial que fizeram quando lá entraram.” 
Foi um desses períodos de greve que impediu a visita do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. “Ele queria visitá-lo, mandou o recado por um amigo, mas por causa das greve não foi possível compatibilizar a sua agenda com os horários da cadeia”. Mas Juncker e Sócrates acabaram por falar ao telefone. O amigo que garante ao Expresso a história, só não sabe dizer se foi Sócrates a ligar para Bruxelas ou se foi Juncker que telefonou para Évora. Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, “tem-se preocupado com ele”, conta um camarada socialista que revela ainda que o portista Pinto da Costa, que foi a Évora em dezembro, já tem nova visita marcada. 
Sócrates escreve. E muito. Cartas para os amigos. Cartas para os media (embora agora com menos regularidade). E um livro. Ou um projeto de livro. O ex-primeiro-ministro está a passar para o papel o seu lado da história: “Ele está a registar tudo o que acontece para memória futura. É uma espécie de diário de bordo. Ele preocupa-se muito em fazer o contraditório e registá-lo por escrito, mesmo que não seja para publicar é para ficar guardado. Se vai dar um livro logo se vê”, explica um visita habitual. 
É à volta da sua versão que andam todas as conversas do ex-PM com quem o visita: “Ele continua a falar muito do processo”, conta um amigo que esteve em Évora há duas semanas. É claro que também se fala de “economia e de politiquice”. E até do cenário macroeconómico apresentado pelos economistas do PS que Sócrates considerou ter sido uma “boa malha”. Isabel Santos, deputada e muito chegada ao ex-PM, diz que o encontrou “com grande determinação”. “Com a determinação que sempre lhe conheci. É evidente que é uma pessoa que está numa situação particularmente incómoda, mas está a vivê-la com grande resistência.” O que coincide com as impressões de outros amigos que por lá têm passado: “Está como sempre o conhecemos, mas oscila entre fases de autoconfiança e de algum desânimo.”
Um inverno de descontentamento

Sócrates foi detido no pico do inverno. “Estava um frio de rachar” em Évora, conta um amigo que o foi visitar logo nos primeiros dias. E o que viu no Estabelecimento Prisional deixou-o de rastos. Não era o mesmo Sócrates. O dos bons fatos, das bonitas gravatas, de aspeto bem tratado, livre. “Estavam seis graus, muito frio e o Sócrates estava vestido com um casacão com as golas levantadas e com a barba por fazer.” 
Nesses primeiros dias, as visitas de Sócrates ainda aconteciam numa pequena sala privada, longe dos outros reclusos: “A salinha tinha a porta aberta e estava um guarda ali, a vigiar.” E porque a detenção tinha acontecido há menos de 15 dias, a “conversa foi sobre o interrogatório”. Sócrates estava “muito determinado e combativo”, mas para o amigo que o ouviu o encontro foi “penoso”. “É chocante ver alguém sem liberdade, agora imagine quando se trata de alguém de quem gostamos.”
A imagem marcou-o. Dias depois, jantou com outro ex-dirigente socialista que também tinha ido a Évora: “Lembro-me de que naquele jantar falámos muito dele. Estávamos os dois deprimidos com o que vimos.” Sócrates está agora “mais magro” mas “não se queixa das condições da prisão”, conta outro amigo que tem ido a Évora regularmente. Recorda-se de que a primeira vez que foi à prisão foi em janeiro “estava um frio de cortar e o único sítio onde tinha aquecedor era no gabinete do diretor”. Um dos truques usados pelos reclusos para se aquecerem é deixar a torneira da água quente aberta toda a noite.
Quando se sentou com Sócrates, o amigo perguntou-lhe: “Olha lá, tu não tens frio?” Sócrates respondeu que andava muito agasalhado e mostrou-lhe as botas. As polémicas botas que tantas páginas de jornais encheram. “As botas são normalíssimas de pano, são umas botas de après-ski, são mais leves e mais quentes. Não têm perigo nenhum.”
No início da detenção, a relação com o diretor José Ribeiro Pereira e com os guardas prisionais foi tudo menos pacífica. Sócrates queixou-se de estar a ser discriminado, os guardas acusaram-no de estar a ser privilegiado. “Continua a ter tratamento de favor”, acusa Jorge Alves, do Sindicato Nacional da Guarda Prisional. 
“Por exemplo, mantém os botins, quando o regulamento é claro e só permite sapatos, chinelos ou sapatilhas. Pode ser absurdo, mas é o regulamento. As mulheres podem ter as botas que quiserem e o regulamento até foi mudado recentemente, mas essa norma ficou.” Na realidade, Sócrates foi obrigado a devolver um par de botas que lhe tinham trazido do exterior, mas pôde ficar com as que tinha no dia em que foi preso. “É o único”, insiste Jorge Alves.
O cachecol do Benfica, oferecido pelo adepto António Ramos, mais conhecido por “Barbas”, também foi impedido de entrar. Os advogados levaram a questão a tribunal e Sócrates venceu. “Em dezembro mudaram o regulamento e os reclusos foram autorizados a ficar com 50 peças de vestuário, sejam elas quais forem. E o cachecol foi considerado uma peça de roupa”, explica Jorge Alves, que mantém as acusações que fez nos primeiros dias: “Recebeu visitas de amigos no primeiro mês, quando mais nenhum recluso o pode fazer e os telefonemas feitos no gabinete do diretor-adjunto só pararam quando denunciámos o caso.” 
Agora, tal como todos os outros reclusos, Sócrates tem um cartão telefónico com plafond e uma lista de dez números para onde pode ligar. Recebe visitas frequentes dos advogados João Araújo e Pedro Delille, que vão à cadeia duas vezes por semana. O assunto de conversa é invariavelmente o mesmo: o processo. “Quer saber tudo”, confirma uma fonte judicial.  Discute com os advogados a estratégia da defesa e cada pormenor dos inúmeros recursos que têm sido apresentados e chumbados pelos tribunais superiores. 
“Alguma culpa ele há de ter”

As visitas a Sócrates são agora iguais às dos outros reclusos. Tudo na mesma sala. E com o tempo a contar. Mas no meio de todos os reclusos, o número 44 destaca-se pelas razões óbvias: “As pessoas vão cumprimentá-lo e dizem-lhe ‘força’. Têm atitudes de grande simpatia”, conta um amigo. Outro camarada do partido diz que quando lá foi, “houve familiares de uns guardas que estão lá presos que quiseram falar-lhe”. Os mais próximos do ex-PM são unânimes: Sócrates é um ser político. “Mas é também um sujeito realista e o seu projeto político é demonstrar a sua inocência.” Não há espaço para pensar noutro futuro ou para fazer outros planos. É claro que esse combate, de dia para dia, parece mais hercúleo. Aliás, como reconhece um atual dirigente do partido, “hoje já começa a ser muito difícil sustentar que nada daquilo é verdade”.
No PS, ou pelo menos nalgum PS, parece ter havido um click na perceção do caso. “Há muita gente a pensar que alguma culpa ele há de ter.” Mas, como confessa o mesmo dirigente, “a malta não fala disso. É um assunto demasiado embaraçoso. É muito desagradável, a maior parte de nós somos ou fomos amigos dele”. Mas, noutro olhar para os acontecimentos, entre os chamados socráticos, há quem sublinhe que o caso tem como pano de fundo uma verdadeira “luta de poder que não é política. É uma luta de poderes”. A tese é que o ex-PM está a ser vítima de uma retaliação por ter mexido com certos poderes. 
“Há sectores da corporação do Ministério Público e dos juízes que sentiram o seu poder ameaçado e resolveram eleger Sócrates como um alvo a abater. Dando um sinal à classe política: ‘Não se metam connosco’.” A acusação é feita por um ex-governante de Sócrates que critica os advogados de Sócrates por terem sido “ligeiros” na avaliação e por não se terem apercebido, desde a primeira hora, dos contornos particulares deste processo. Por tudo isto, este socialista não tem dúvidas: “Ele acabará por ser condenado. A ratoeira está montada.”
O circo levantou

As câmaras de televisão e os muitos jornalistas que acamparam à porta da prisão, durante os primeiros meses, foram-se embora. A razão é simples: Sócrates ainda vende mas deixou de ser manchete. Pôde até receber a visita de um dos filhos sem qualquer publicidade. Mas a mãe ainda não foi visitá-lo. “Se falassem com a senhora percebiam. Ela está doente e muito abalada com tudo isto. Muito revoltada”, conta um amigo de Sócrates. Aos poucos, Évora (e o país) habituaram-se ao facto de terem um ex-primeiro-ministro preso.
A relação de Sócrates com a direção da cadeia e os guardas também normalizou e o dia a dia prisional tem sido revelado, pelo menos em parte, num blogue escrito por um ex-inspetor da PJ de Setúbal acusado de corrupção. A mesma testemunha que não quer ser identificada diz que os dois homens “são bastante próximos”, o que não impediu João Sousa de divulgar alegados projetos políticos do ex-primeiro-ministro: “A ambição de ser presidente da nossa República, racionalmente avaliando, desapareceu, mas na sua mitologia pessoal (quiçá loucura) ainda é ‘presidenciável’: os grandes homens também passam pela prisão, é algo que os torna maiores, mais sensatos, sapientes. Sócrates vê-se no mesmo patamar olímpico de Mário Soares, Martin Luther King Jr., ou mesmo Nelson Mandela.” 
“José Sócrates está morto em vida. Dorme numa fria e suja cela que mais parece um jazigo”, sentencia João Sousa, que contou ainda uma história sobre pulgas que atacaram Sócrates, prontamente desmentida pelo círculo próximo do ex-governante. O episódio das pulgas vem relatado no livro “Cercado” que os amigos de Sócrates fazem questão de garantir que ele “não leu” nem pretende ler.
Libertação na campanha?

Depois de três dias de interrogatório, as medidas de coação decretadas por Carlos Alexandre, no dia 24 de novembro do ano passado, surpreenderam pela dureza inusitada. Santos Silva e João Perna ficavam em prisão preventiva, tal como José Sócrates. 
O juiz do ‘ticão’, responsável pela instrução dos grandes processos em Portugal, como os vistos gold ou a ‘Operação Furacão’, alegou perigo de perturbação do inquérito e perigo de fuga. A reação de Sócrates foi publicada no Expresso: “Só deixa de ser livre quem perde a dignidade. Sinto-me mais livre do que nunca.” Mais tarde, numa carta escrita a Mário Soares a propósito dos 90 anos do antigo Presidente, Sócrates revoltava-se: “Perigo de fuga? Perigo de fuga? Que gente é esta, Mário Soares?”
O caso rapidamente invadiu a política. E o PS. Apesar da separação das águas que o líder socialista, António Costa, impôs desde a primeira hora — ele que só o visitou uma única vez —, nos bastidores correm muitas histórias sobre escutas a envolverem outros ex-dirigentes do partido e ex-governantes de Sócrates. Mas até agora nada se confirmou. 
“A grande questão que ponho neste momento é se querem fazer disto um caso político?”, questiona um antigo dirigente que acrescenta: “Não somos ingénuos. Temos a consciência de que há gente que quer prejudicar o PS ao transformar isto num caso político.” “É que se fizerem isso passamos para uma questão de regime. E aí o PS terá de ir a combate”, ameaça. Com o aproximar das eleições legislativas, a possível libertação de Sócrates ainda durante a campanha eleitoral pode ser um sério revés para o partido. O ex-PM passaria a dominar o noticiário. Mas outro receio é que a acusação do Ministério Público possa também ser conhecida ainda antes das eleições e mostre, caso se confirmem os indícios, as práticas de corrupção num governo socialista. Uma coisa é certa, estes seis meses de detenção do ex-governante, sem uma acusação formal, estão a ser muito mal entendidos. “No meio disto tudo aprendi alguma coisa com o sistema judicial. Demorar tanto tempo para produzir uma acusação é inacreditável”, confessa, revoltado, um socrático.
O motorista João Perna foi libertado ao fim de um mês, passou a estar preso em casa e agora só tem de se apresentar uma vez por semana numa esquadra da polícia. Carlos Santos Silva passou para prisão domiciliária esta semana. 
Sócrates é o único arguido do processo que continua na prisão. Entrou no dia 24 de novembro e saiu pela segunda vez esta quarta-feira para prestar declarações no DCIAP. Até ao dia 9 de junho, a sua medida de coação terá de ser reavaliada pelo juiz Carlos Alexandre. Sócrates recebeu a notícia da ‘libertação’ de Santos Silva com “moderada satisfação”. Já só falta ele.






































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