sábado

É tempo de reler Luíz Pacheco: Comunidade





     É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados : uma pernita de criança, um braço nu sòzinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.
    Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.
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