terça-feira

Sociedade da [des]Confiança: a legionella será um sintoma duma doença maior em Portugal

No jornal Expresso lê-se hoje o seguinte: Origem do surto "pode ficar sem explicação". Depois, o investigador fundamenta a posição: - especialista em qualidade do ar admite que pode nunca se encontrar a causa deste surto de legionella, que já causou cinco mortes e obrigou à hospitalização de outras 233 pessoas.

Os receios e a incerteza são suportados pela suposição do referido investigador, que é engenheiro do ambiente e tem por base o facto de um dos doentes identificados ter passado na área afetada há mais de 20 dias e, entretanto, poder "já não haver registo da bactéria em nenhum dos locais que estão a ser inspecionados" pelas autoridades sanitárias.

Para complicar a identificação do foco e da situação, é, na mesma fonte, adiantado o seguinte:

A mesma ideia é passada por fonte da Direção Geral da Saúde: "Em 'n' casos, desde 1978 até agora, não se conseguiu identificar a estirpe ou o fio condutor da doença". E no caso atual também "podem existir amostras já mascaradas ou ausência de provas".


Perante isto, devemos reconhecer que a situação poderá ser mais complexa do que pensávamos, v.q., não havendo uma eliminação cabal do foco permanecem para o futuro as razões da sua incerteza, com isso gerando todos os receios, alteração de hábitos de milhares de pessoas que em Portugal passarão a viver com medo de consumir os bens essenciais à vida e de assegurar a sua higiene diária. Uns desejam há regressar à terra... Como quem antecipa um funeral entre os seus entes queridos!!

Se quisermos fazer uma extrapolação destas condições precárias de saúde pública, que hoje afligem os portugueses (e alguns mais em concreto na zona de VFX!!), para outros domínios da governação em que as condições de funcionamento são, no mínimo, problemáticas - facilmente elegemos os comportamentos da área da Justiça que, por razões de ordem económica e financeira, têm agravado a relação do cidadão com o Estado, porquanto a injustiça reinante na sociedade - (relativamente a pessoas e a empresas, principal obstáculo da boa actividade económica) tem afectado os vínculos de confiança que necessariamente têm de existir para que um mínimo de ordem, paz e tranquilidade sociais existam numa dada sociedade.

Seria como, mal comparado, os semáforos de uma grande cidade deixassem subitamente de funcionar. Instalar-se-ia o caos... Um caos que implicaria múltiplos acidentes em cadeia e, consequentemente, inúmeros mortos. 

Percebe-se hoje, por inúmeros exemplos, oriundos da sociedade portuguesa (que envolve a banca e alguns banqueiros e a classe política em exercício nas últimas décadas)  e também pela mega-fraude de evasão fiscal conhecida no Luxemburgo (desvendada pelo Consorcio Internacional dos Jornalistas de Investigação), que algo está podre no reino da Dinamarca... Quer em Portugal quer na Europa da qual fazemos parte.

E aqui chegamos à premissa fundamental da sociedade de confiança, a qual deve assentar no tal consensus juris, ou concordância básica de atitudes e juízos sobre os comportamentos em sociedade como forma de boa governação dos destinos da República. Será que este pressuposto básico se verifica na sociedade portuguesa?! E na sociedade europeia - no seu conjunto?! 

Tenho para mim que um inquérito feito hoje ao conjunto dos povos da UE acerca dos níveis de confiança entre cidadãos e alta administração/Estado (e instituições dele dependentes que asseguram a justiça e outras funções de soberania) seriam profundamente negativos. Se assim fosse, o sentimento geral partilhado - relativamente à validade de interesses individuais e comuns - seria de desconfiança, sobranceria, inibição e, no limite, medo do próprio poder (em exercício). 

No caso português, pela brutal carga fiscal sobre cidadãos e empresas, pela impreparação e incompetência generalizada das elites decisoras e pela falta de ética e de moral utilizada nos negócios do Estado, porque guindada pela selvajaria da ideologia neoliberal que tem desmembrado com o que resta do tecido produtivo nacional. 

Este caldo de cultura "passista" gerou uma situação nova em Portugal: o medo, a qual é explorada e racionalizada socialmente, desde logo na recorrente chantagem política exercida sobre o Tribunal Constitucional, tornando este refém das imposições em matéria de política fiscal do Governo, mesmo que tais imposições orçamentais integrem medidas violadoras de direitos sociais básicos garantidas pela Constituição da República Portuguesa (CRP). No fundo, é a ideia - tornada realidade - de institucionalização do esbulho, ou de legalização do roubo aos salários dos funcionários públicos e pensionistas para equilibrar o défice de um Estado ruinosamente gerido pelas tais elites políticas. 

Em Portugal, curiosamente, o filósofo José Gil escreveu uma oportuna obra sobre esse Medo - o qual grassa hoje em diversos sectores da nossa sociedade, e é tanto maior consoante for a precariedade das condições de vida das pessoas, quer relativamente ao Estado quer às empresas onde trabalham. 

Serve esta problemática situação de saúde pública, despoletada pela legionella, para questionar como em Portugal, e de forma súbita e com estrondo, foram violados compromissos sociais, foram interrompidos hábitos de consumo essenciais à própria manutenção da vida, como decorre hoje da vida de milhares de pessoas na zona de Vila Franca de Xira, foram - e são cometidas fraudes de natureza financeira à vista de todos de forma quase impune, e em que a intervenção dos poderes públicos parece orientar-se por critérios e medidas discricionárias tendentes a punir os mais frágeis e desprotegidos e a dar cobertura aos chamados poderosos.

Enfim, um role de situações violadoras do direito vigente e que configuram objectivamente crimes e situações desviantes a que a lex não poderia fechar os olhos. Tudo isto se agrava quando são os próprios poderes públicos os mecanismos estaduais a dar o exemplo do laxismo, da irresponsabilidade que depois conduz a situações de inimputabilidade. Ou como diz o povo: a culpa em Portugal morreu solteira!!!

Eis o que abala o tal modelo de sociedade de confiança que proclamamos, mas que, na prática, não se verifica em múltiplos sectores da sociedade portuguesa. E ainda que o combate e monitorização ao surto de legionella esteja a correr de modo relativamente eficiente, nas demais áreas e sectores da governação, da Justiça à Educação, dos Negócios Estrangeiros à Economia e Finanças Públicas - reina o caos. É como se Portugal vivesse o ambiente duma cidade com os semáforos avariados... É esta deriva que empurra a sociedade portuguesa para a desconfiança e para a instabilidade permanente.

Aliás, foi esta a tese defendida por Alain Peyrefitte, em 1995, um observador privilegiado dos fenómenos sociais, que chamou a atenção para esta deriva que hoje está a ser experimentada pela generalidade das sociedades europeias, em diferentes graus e intensidades, consoante a consistência do modelo económico e social em jogo e das fragilidades estruturais de cada economia nacional.

Ora, se o grande objectivo do Estado deve ser gerar o efeito de CONFIANÇA, e foi o que defendeu na sua obra, La Société de Confiance - e não privilegiar, como hoje lamentavelmente ocorre, a circulação de dinheiro de forma abundante, mas numa situação tal que os agentes económicos pretendem esconder do Estado os seus bens, interesses e actividades. Foi isto precisamente que fez Ricardo Salgado: movimentou centenas de milhões de euros quando já estava inibido de o fazer por parte do Banco de Portugal. E fê-lo de forma deliberada e intencional e sabendo que estava a penalizar ostensivamente interesses particulares e empresariais legítimos, os quais hoje devem ser protegidos e ressarcidos. 

Em suma: mutatis mutandiso exemplo da legionella é apenas o sintoma duma doença maior em Portugal. A falta de manutenção e de fiscalização às condições em que operam as unidades industriais, o laxismo do Estado-fiscalizador para com as "empresas amigas" do regime, a degradação dos padrões de qualidade dos serviços públicos - por restrições financeiras servidos pela ideologia ultra-liberal que formou estes decisores de empresa hoje à frente do Estado (tratando-os por igual, quando são coisas distintas!!) - fez com que, de súbito, Portugal se convertesse num verdadeiro manicómio cujos malucos buscam hoje, desabridamente, as causas que nos matam e nos levam às camas dos hospitais. 

Talvez também guiado por um azar dos Távoras - a este povo tudo acontece. Todavia, estas mortes, sobretudo por elas e por aqueles que directamente as mais sofrem, devem ser meditadas por todos e por cada um de nós. Na impossibilidade de responsabilizar directa e unipessoalmente o alegado PM, ou o ministro da Saúde, que procura dar o seu melhor, levamos com aquele retumbante soco no estômago que nos obriga a reconhecer as falhas, as omissões, as permissividades, o laxismo dum povo inteiro que, hoje, se revela incapaz de identificar, localizar e erradicar uma doença relativamente fácil de curar. 

E porque somos assim, talvez possamos ver nessa miséria franciscana as causas da nossa decadência e do nosso próprio empobrecimento. O nosso fado!!!

A partir destes escombros sociais e políticos, que denunciam a desconfiança que os cidadãos hoje revelam relativamente ao Estado e aos poderes públicos em geral, problemático será alinhar as razões, os recursos e as medidas capazes de nos fazer levantar os olhos do chão e recuperar a sociedade de confiança.

Até lá, andamos todos com medo. E não tomamos banho!!


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