domingo

A Guerra no horizonte - por Luís Meneses Leitão -

SYNTAGMA


A revista Time está convencida de que o abate do avião da Malaysia Airlines por parte dos rebeldes pró-russos corresponde a um regresso à guerra fria. Efectivamente, a situação faz lembrar o abate do avião da Korean Airlines pela URSS sobre a ilha de Sacalina em Setembro de 1983, quando a guerra fria estava no seu auge. Parece-me, no entanto, que o que se está a passar não representa qualquer regresso à guerra fria. Por muito que Putin queira reconstituir o antigo espaço soviético, o back in the USSR não é hoje mais possível. O que se está a passar é antes um regresso a 1914. Na altura também houve um crime bárbaro, o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand pelo terrorista Gravilo Princip, o que serviu de motivo para que a guerra se iniciasse para esmagar todos os "sérvios regicidas". Agora, porque os rebeldes russófonos da Ucrânia cometeram também o bárbaro crime de abater um avião civil, Putin é sumariamente declarado culpado desse crime e a União Europeia vai aplicar sanções para mergulhar a Rússia na recessão. Parece assim que todo o povo russo vai agora expiar uma culpa colectiva pelos crimes cometidos pelos rebeldes pró-russos da Ucrânia.

Quem conhece um pouco da história da Rússia, sabe perfeitamente que estas sanções não vão vergar a Rússia, só podendo pelo contrário conduzir à guerra. Primeiro, é evidente que Putin não pode deixar de apoiar os russos da Ucrânia, sob pena de ser considerado um traidor na Rússia, o que facilmente acontecerá em virtude da fúria nacionalista que esta ameaça de sanções já está a gerar. Segundo, mesmo que suporte um verdadeiro inferno, o povo russo sempre resistiu aos ataques ao seu país. Quando Napoleão conquistou Moscovo, os russos entregaram-lhe a cidade em chamas, obrigando-o à retirada. Na segunda guerra mundial, mesmo depois de terem sofrido vinte milhões de mortos, os russos vergaram as tropas de Hitler, obrigando-as a retirar e ocuparam Berlim. Terceiro, o isolamento mundial também nunca assustou a Rússia. Estaline não hesitou em adoptar a fórmula do socialismo num só país, isolando a Rússia do resto do mundo, quando a revolução mundial desejada por Lenine não se verificou.

Não tenho dúvidas de que, se Putin for colocado entre a espada e a parede, terá que optar pela espada. É por isso que me parece que nesta história das sanções à Rússia, os dirigentes europeus estão a brincar com o fogo. A guerra não irá assim ser fria. Quem vai ter frio será o norte da Europa, quando falhar o abastecimento do gás russo. Já a guerra será muito quente. No fundo 2014 está a replicar 1914. Sem que ninguém se aperceba, andam todos a preparar o apocalipse.
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Obs: Só alguém com um conhecimento muito detalhado da História das relações internacionais dos últimos dois ou três séculos podia estabelecer aqui estas correlações. Luís Meneses Leitão é uma dessas pessoas que o faz com elevada eficiência, além disso escreve admiravelmente português. É muita coisa boa (e rara) reunida numa só pessoa. Por isso, merece leitura atenta. 
Apenas não compreendo a reserva do autor (no 1.º parágrafo) em tentar dissociar a responsabilidade política individual do autocrata Putin das consequências inerentes às sanções impostas pela UE relativamente ao povo russo. 

Desde quando, o povo russo está protegido numa cápsula do tempo, imune a todos os males gerados (directa ou indirectamente) pelas decisões dos respectivos governantes?!

Creio que em política esta autonomização é problemática, senão impossível, e, por maioria de razão, ainda o é mais na arena internacional. Pois Putin - não é apenas o autor moral desse massacre, ele é quase um operacional que, no lugar dos rebeldes pró-russos na Ucrânia, faria exactamente o mesmo: pressionaria o gatilho que disparou o míssil terra-ar que abateu o avião civil.

A sua responsabilidade (moral e política) ainda é maior, razão por que defendo estarmos perante um crime contra a Humanidade. Um crime que morrerá IMPUNE - como muitos crimes praticados durante quase meio século de Guerra Fria.  
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