Investigação em Humanidades e Ciências Sociais à beira de uma hecatombe O Inverno da investigação - por Diogo Ramada Curto
Investigação em Humanidades e Ciências Sociais à beira de uma hecatombe
O Inverno da investigação
Mariano Gago, em entrevista ao Expresso do passado dia 14, pôs o dedo na ferida, e denunciou a política errada de falta de confiança nas instituições universitárias e de pesquisa. Na mesma linha, poder-se-á argumentar que a responsabilidade na criação de concursos altamente contestados denuncia falta de autoridade, mais propriamente científica, por parte de quem decide, governa e torna obscuros os meandros de um processo que não tinha, até agora, sido objecto de tanta discussão. Muito concretamente, em todas as áreas se torna evidente que não foram contempladas candidaturas de excelência. Qualquer que se seja o sentido que se atribua à putativa “excelência”, irmã gémea do “empreendedorismo” — um chavão a pretexto do qual se reduzem custos para aumentar produtividade.
No que respeita às ciências sociais e humanas, há dois aspectos interligados que podem ajudar a perceber as referidas faltas de autonomia e autoridade. Refiro-me à remodelação do Conselho Científico na mesma área, que se politizou partidariamente e para o qual o ministro da tutela começou por nomear a sua própria mulher e um amigo de juventude, director de um centro de investigação sempre mal classificado pela própria FCT. Bem mais importante ainda é mencionar que o número de contratos foi reduzido para metade. Ou seja, se em 2012 foram dados cerca de 20% do total dos contratos às ciências sociais, este ano os mesmos passaram para quase 10%.
Pertenci ao anterior Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da FCT e assisti a tentativas do mesmo género para reduzir a importância da área. Por isso mesmo, percebo bem que só graças a um novo Conselho — com menos autonomia, autoridade e experiência — foi mais fácil fazer gato-sapato. Mais. Com a redução do número de contratos atribuídos à área em causa, é normal que tenham vindo ao de cima possíveis escolhas arbitrárias, algumas distorções parciais e, sobretudo, uma enorme incapacidade para fazer reconhecer como legítimos critérios de avaliação que não são uniformes.
2. A ausência de reconhecimento que suscita uma instituição como a FCT, ou seja, o pôr em causa de uma instituição do sistema de investigação em Portugal, está presente em muitas outras escalas do frágil edifício científico que caracteriza as humanidades e as ciências sociais. Um inventário, mesmo que incompleto, das debilidades deste edifício não implica que tivesse existido uma qualquer época dourada, do passado recente ou longínquo.
Arrisco mesmo traçar um diagnóstico das debilidades em causa, a partir de cinco grandes linhas, sem preocupações de as apresentar por ordem. Antes de mais, o modo como as carreiras se organizam favorece a figura do professor transformado em administrador, aspirando a um poder de direcção, mas totalmente separado da figura carismática do professor reconhecido pelas suas investigações, criações e capacidades de inovação. Num quadro dominado pelos administradores burocratas, os que investigam raras vezes têm capacidade para impor as suas escolhas, sobretudo quando se trata da nomeação dos mais jovens e brilhantes investigadores. Logo, as nomeações dos mais jovens acabam por ser decididas quer por meros critérios de gestão, quer por parte dos que chegaram ao poder por via administrativa.
Num quadro de cinzentismo e de depreciação do valor dos mais carismáticos professores-investigadores, alguns dos critérios de excelência e de internacionalização — duas das palavras mágicas dos diplomas que organizam a investigação em Portugal — assumem carácter meramente formal. Por exemplo, conheço quem por ter passado umas semanas ou uns meses com o cartão de uma qualquer biblioteca universitária norte-americana exiba os galões de “visiting scholar” ou mesmo de “visiting professor” desta ou daquela universidade da Ivy League. O mesmo se passa em relação à participação em colóquios ou em redes ditas internacionais. É que são sobretudo dignos de pacóvios muitos dos casos de puro exibicionismo de sinais exteriores de internacionalização. Curiosamente, são os professores-administradores os que mais ufanos se mostram na acumulação de tais títulos de internacionalização — que fazem sorrir uma nova geração de investigadores que, apesar de precária, se tem mostrado muito mais capaz de se internacionalizar.
Atribuo à obsessão pelos critérios bibliométricos o mesmo peso que um professor-administrador incapaz de distinguir entre níveis aprofundados de fazer ciência e as meras obras de divulgação. Claro que, pelo menos nas humanidades e ciências sociais, a bibliometria tem dois tipos de utilidade. Por um lado, serve para encontrar um critério de aparente objectividade que esconda situações de inegável arbitrariedade quando se trata de escolher, classificar e nomear. Por outro lado, permite que as escolhas meramente administrativas se baseiem em indicadores de produtividade e de boa gestão. Aqui bate, talvez, um dos pontos de maior dissolução de todo o edifício: a incapacidade de impor verdadeiros critérios de inovação científica baseados numa cultura crítica, analítica e problematizadora.
Não é, aliás, por acaso que os maiores defensores da bibliometria quantitativista são os que mais facilmente definem a investigação a partir de temas — não de problemas — com falsas preocupações de exaustividade. É que as listas de temas, tal como em muitos casos a exibição de teorias, modelos e metodologias, a cargo dos que já foram denominados como os seus cães de guarda, servem para demonstrar uma espécie de poder e para criar a ilusão da existência de escolas. Ora, estas últimas vão ao encontro da valorizada noção de grandes projectos, com financiamentos avultados, exibidos à maneira dos velhos troféus de caça, mas que raras vezes se encontram ligados à inovação criativa.
Última das debilidades do edifício das humanidades e ciências sociais: são poucas ou nenhumas as condições que favorecem a investigação e o ensino universitário que delas deveria resultar. Por exemplo, não existem bibliotecas em construção, com colecções pensadas de forma integrada — um processo lento que não é substituível pelo acesso a bases de dados, ainda por cima truncadas e desactualizadas. Ora, a existência de uma boa biblioteca — conforme disse, há muito, Marc Bloch a propósito da história comparada — fará mais pela interdisciplinaridade do que todos os discursos programáticos a seu respeito. É aqui que será necessário uma maior concentração de esforços, para que os gastos em pessoal e na sua formação sejam devidamente rentabilizados. Por exemplo, não seria mais razoável evitar a dispersão de recursos em Lisboa, num raio de dois quilómetros, por pequenas bibliotecas de centros e universidades, e simplesmente dotar de meios a Biblioteca Nacional?
3. Com a chegada do Inverno, imagino que o edifício a que me refiro poderia ser bem diferente. A esperança que ainda tenho talvez seja resultado de trabalhar e escrever diariamente na Biblioteca Nacional, uma instituição onde, apesar de todos os cortes e da falta de meios, o acolhimento aos leitores é caloroso. Mas o que mais me determina resulta de me cruzar, no meu quotidiano, com colegas mais novos, investigadores de uma geração que trabalha em posições precárias, mas com rasgo e capacidade crítica e problematizadora. O respeito que tenho por essa nova geração, que não beneficiou das condições privilegiadas de estabilidade e segurança de emprego que usufruí desde os meus 22 anos, é imenso. Não resisto, por isso, a evocar aqui três casos que apontam para caminhos muito diferentes.
Bruno Monteiro, um jovem sociólogo do Porto que não tem 30 anos, e cujo primeiro grande livro aguarda publicação, representa bem essa nova geração de investigadores em que valeu a pena investir. Herdeiro de uma tradição de pesquisa sedimentada por várias gerações de cientistas sociais do Porto, de Madureira Pinto a Virgílio Borges Pereira, tem demonstrado nos seus trabalhos um conhecimento aprofundado, crítico e analítico, do Porto e do Vale do Ave. Utilizando este território como uma base, Monteiro, graças às condições de estabilidade que a Universidade do Porto lhe tem sabido proporcionar, tem conseguido multiplicar as suas áreas de interesse e cruzar saberes. Entre as suas actividades, os seus estudos publicados por uma pequena editora independente, Deriva, e traduções por ele coordenadas, merecem ser destacados, enquanto propostas originais em que os conhecimentos disciplinares se cruzam em função da colocação de problemas, Ricardo Jorge, A peste bubónica do Porto (2010); Ludwig Wittgenstein, Observações sobre “O Ramo Dourado” de Frazer (2011);História Social do Porto (2011); Michael Pialoux e Christian Corouge, Crónicas Peugeot (2013).
Porém, as condições, os resultados e as expectativas sugeridos pelo caso de Bruno Monteiro quase parecem excepcionais no confronto com dois outros casos. Por um lado, o de uma brilhante investigadora, doutorada há três anos, que tem agora 40 anos. Doutorou-se tarde, por ter tido sempre de trabalhar ao mesmo tempo que investigava. A estabilidade do trabalho de professora num liceu de província constituiu-se como uma prioridade, quando vieram os filhos e depois o divórcio. Neste momento, a necessidade de assistência à família leva-a a angariar outros trabalhos — como tradutora, ghostwriter e tarefeira de projectos científicos — para suplementar o seu ordenado. Seria um devaneio arriscar tudo numa bolsa. Porém, sem esta a sua disponibilidade para se dedicar à escrita, necessariamente morosa, de artigos para poder ser avaliada afigura-se como uma quimera. O seu potencial, no qual irei continuar a acreditar, está pois comprometido neste círculo vicioso do qual dificilmente conseguirá fugir. E só por hipocrisia com todos os que se confrontam com situações precárias se poderá argumentar que a necessidade aguça o engenho...
Último caso: um aluno que conheço por se ter licenciado na faculdade onde ensino, onde acabou por se doutorar com bolsa da FCT, vai interromper a sua bolsa de pós-doutoramento que lhe foi concedida também pela FCT. Concorreu à bolsa de uma prestigiada fundação de pesquisa brasileira e foi escolhido como um dos quatro investigadores em mais de uma centena de candidatos. Partirá em Janeiro. Suspenderá a bolsa, na certeza de que o seu futuro em Portugal é muito incerto. Felicitei-o, como mandam as regras, mas guardei para mim a ideia de que não irá voltar.
4. Como em qualquer edifício, são vários os que têm responsabilidades sobre o estado em que se encontra a construção. A FCT, as universidades e centros de pesquisa e, sem dúvida mais limitados, os próprios investigadores situam-se em patamares diferentes de escolhas e execução. Porém, neste Inverno que agora começa, a hecatombe vinda de cima — suscitada por uma enorme desorientação e por erradas escolhas políticas — tem consequências difíceis de admitir. Sobretudo quando se trata de sacrificar o elo mais fraco e de transformar em vítimas os investigadores de uma nova e promissora geração.
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Obs: Quem passou pelo maoismo e acabou no intérprete mais radical do neoliberalismo bárbaro, toda esta hecatombe de que nos fala (e bem) Diogo Ramada Curto, era previsível;
- quem favorece despudoradamente, senão mesmo em violação da lei, os interesses do ensino privado contra o interesse do ensino público, tem o patrocínio de alguém que se move por oportunismo, animado por uma ideologia sectária e não devia representar o interesse público;
- quem foi um divulgador científico e se apresentou como o expoente da exigência e do rigor e depois toma decisões baseadas no amiguismo e nas clientelas, é indigno de desempenhar qualquer função pública, seja ela um "almeida" de uma autarquia de subúrbio, cuja função é apanhar o lixo das ruas, ou um ministro da Educação & Ciência;
- quem nomeia amigos pessoais para o Conselho Científico das CSH e interfere na constituição dos júris - não é uma pessoa de bem investida de representar o bem comum, mas um pequeno népota que utiliza o poder arbitrariamente, como se vivesse num regime totalitário - de que o maoismo da juventude acabou por ser fonte de inspiração e de práxis política décadas mais tarde;
- quem nomeia um júri - povoado por docentes impreparados - que desconhecem os conceitos, os métodos e as problemáticas da Ciência Política, da Sociologia e das Rel. Internacionais - além de revelarem uma estrondosa falta de currícula na área não é digno de quem fazia da divulgação científica um modo de vida e de exposição pública;
- quem nomeia a própria mulher para órgãos de decisão que mexem com dinheiros públicos e sem qualquer perfil para a função, não só destrói os valores que apregoa (exigência e rigor!!), como também é típico de pessoas que têm uma visão patrimonialista do aparelho de Estado, i.é, como se este fosse uma coutada de caça a que só alguns amiguinhos e parentes mais chegados podem frequentar;
- quem diminui drasticamente o budget para acções de I & D - e o faz com o gáudio da alegada racionalidade dos recursos do Estado - só pode importar-se mais com os processos do que com as pessoas, o que é indigno de alguém que se reclama humanista e representa os interesses do Estado;
- quem destrói tão aceleradamente o ensino secundário, o ensino universitário e, concomitantemente, escavaca o débil sistema de Investigação Científica concebido e alavancado em Portugal nas últimas décadas por Mariano Gago (e as suas equipas) - não merece perdão possível, merece cadeia efectiva;
O dr. Crato não pode tratar as áreas do Estado sob sua directa responsabilidade como se comporta um traficante de droga ou uma acção continuada de carjacking - se tratassem. Um dia, talvez mais cedo do que possa pensar, alguém irá historiar os crimes públicos que estão sendo praticados sob sua tutela e dele exigirão devida indemnização por bárbaros actos de lesa pátria.
Politicamente, crato é uma nulidade. Tem demonstrado isso à saciedade (em todos os sectores da educação) e em todas as suas decisões.
Não é mais do que um subproduto, um resíduo do portismo injectado à pressão na 5 de Outubro, quiça na esperança de implodir mais rapidamente todo o edifício da Educação e Ciência em Portugal - na vã esperança de que, desse modo, se faz melhor o ajustamento que a troika reclama ao XIX Governo (in)Constitucional que tem vindo literalmente a destruir todos os sistemas e subsistemas de ensino - com o agreement de Passos Coelho (a cabeça da hidra) que, para se manter no poder, radicalizou as medidas do memo da troika para reforçar o seu mesquinho e desnorteado projecto de poder em Portugal.
Crato, no fundo, é a face carvão do espelho rachado - reflexo da impreparação técnica, política e cultural que atingiu Portugal e os portugueses nos seus alicerces desde o verão de 2011. Data a partir da qual um bando de incompetentes sôfregos pelo poder, e coadjuvados por Belém, assaltaram S. Bento para converter Portugal e os portugueses, nas mais diversas áreas e políticas públicas, no mais bárbaro experimentalismo político, o qual terá consequências negativas e de repercussões inimagináveis nos próximos anos em Portugal.
Amanhã ninguém se lembrará de crato e de Passos coelho, mas as suas mazelas ficarão gravadas a lazer na estrutura da sociedade e da economia em Portugal.
Etiquetas: Diogo Ramada Curto, hecatombe, Inverno da investigação, Investigação em Humanidades e Ciências Sociais
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