sexta-feira

Evocação de Machado de Assis

















Colocar no centro da acção narrativa o seu autor principal, Brás Cubas, ou seja, um homem que já tinha morrido mas que deseja escrever a sua autobiografia, é a proeza do escritor Machado de Assis. Assim, do túmulo do morto, Machado de Assis reconstroi um defunto cuja missão será passar a escrever as suas memórias póstumas.



E começa essa tarefa com uma primeira dedicatória: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas. Uma outra dedicatória é feita ao Leitor - em que o narrador explica o estilo do seu livro, explicitando também os seus funerais e a sua causa mortis, uma pneumonia contraída. 
Sem nos preocuparmos com as demais componentes da narrativa desta excepcional obra, pretendo aqui sublinhar a técnica narrativa a que Machado de Assis recorreu, revolucionária ao tempo, para reconstruir as memórias póstumas - pessoais e sociais - que fixaram um tempo, uma sociedade e um quadro de costumes. 

Por outro lado, Machado de Assis, que um dos maiores escritores de língua portuguesa, rivalizando com os grandes do seu tempo, como Eça e outros, deixa-nos uma semente, ao mesmo de preocupação e de natureza reflexiva. Ou seja, a sua técnica narrativa leva-nos a pensar o conceito de representação que fazemos de nós próprios, o que nos permite, a partir do presente, repensar todas as nossas relações passadas, as quais poderiam ser melhoradas no futuro. 

É este jogo quaternário do tempo que Assis introduz na literatura e que faz dele uma fonte de conhecimento e de saber que não tem par nas demais fontes do conhecimento. Só uma cabeça genial se lembraria de colocar um defunto a retratar toda a sua autobiografia, como se o narrador tivesse a capacidade de sair fora do tempo dos comuns para se avaliar numa outra instância.

Há algo de pessoano neste desdobramento - psicológico e temporal - que nos convida a meditar em saber, afinal, quem somos. Mesmo quando supomos que já sabemos tudo acerca de nós.