sexta-feira

Desafios ao Direito Internacional colocados pelas alterações climáticas. A gestão de catástrofes naturais e a figura do refugiado climático. Exemplo do micro-Estado de Kiribati




A recente decisão do tribunal de Auckland, na Nova Zelândia, ao indeferir um recurso apresentado por um homem de 37 anos, Ioane Teitiota, originário do conjunto de ilhas que integram um pequeno Estado no Pacífico, Kiribati, que solicitava asilo alegando que não podia regressar ao seu país devido às alterações climáticas, veio colocar vários desafios ao Direito Internacional, ao Direito Internacional do Ambiental e, por maioria de razão, à Política internacional - que é a sede principal para onde convergem todas as tensões relacionadas com as decisões que regulam as alterações climáticas. 

À semelhança de outros Estados compostos de ilhas no Pacífico, o Kiribati é um país pequeno, com cerca de 100.000 habitantes e está muito exposto ao aquecimento global. Trata-se de 32 pequenas ilhas e atóis que estão apenas dois metros acima do nível do mar. Com a perspectiva da subida do nível de água dos oceanos até final do século, é fácil de prever que muitas daquelas ilhas ficarão completamente submersas, desaparecerão. 

Esta questão envolve um cidadão do Kiribati que reside e trabalha na Nova Zelândia e a quem foi negada a continuação de permanência naquela país, e enfrenta agora um processo de deportação, dado que a sua autorização de residência expirou, e o tribunal não deu sinais de alterar a sua decisão, a quaal se inscreve no domínio mais vasto da disseminação do risco e da universalização dos perigos trazidos com a globalização, cujo fenómeno complexo não se circunscreve aos locais onde são produzidos. Esta cadeia de ligações articula praticamente todas as pessoas do planeta, e a globalização, uma vez mais, veio demonstrar que as pessoas já deixaram de viver em espaços nacionais delimitados pelos Estados através das respectivas soberanias nacionais. 

Aliás, o caso de Teitiota, que se tornou agora num refugiado climático, é a ilustração prática do verdadeiro significado da globalização do risco na experiência quotidiana da acção do homem e dos efeitos da sua intervenção irresponsável na Natureza. Uma irresponsabilidade que tem consequências na economia, na informação, no ambiente/ecologia e na globalidade das tensões socioculturais de âmbito transnacional que actualmente caracteriza a chamada sociedade civil global. 


No caso vertente, o micro-Estado de Kiribati não provocou essas alterações climáticas, de que é vítima, e, doravante, coloca pressão sobre os seus habitantes, mas foi o conjunto dos Estados (limítrofes e os demais que integram o sistema internacional e são os mais poluidores, como a República Popular da China) que, nas suas práticas industriais abusivas (excedendo as suas quotas de emissão de CO2 para a atmosfera), estão a contribuir para a gestação de futuros eventos extremos cujo resultado será, a prazo, a emergência de mais catástrofes naturais de origem humana. 

De resto, a ideia moderna de catástrofe natural, pelos efeitos devastadores que gera nas populações, no património e no ambiente, impele a uma atitude positiva de assistência, definida, na prática, pela obrigação legal e o dever moral de assistir o outro. Ora, neste contexto concreto, e conhecendo bem as condições geo-climáticas do Estado de Kiribati, perguntamo-nos por que razão o tribunal neo-zelandês proferiu uma decisão daquela natureza?!

Ainda que o pedido de asilo formulado por Teitiota se tenha feito ao abrigo de uma convenção internacional, em que alega ser perseguido, de forma passiva, pela vulnerabilidade do seu país às alterações climáticas (geradoras, por sua vez, de tempestades, poluição das águas subterrâneas inviabilizando terras agrícolas, etc), por seu lado, aquele tribunal fundamentou a recusa com base na argumentação de que aquela convenção, assinada após a 2ª Guerra Mundial (1939-45) - em 1951 - estabelece que os casos de perseguição que justificam um pedido de asilo resulta da acção directa de natureza humana. 

Ou seja, no entendimento daquele juiz - Teitiota quando regressar (compulsivamente) ao seu país, Kiribati, não sofrerá uma violação sistemática e sustentada dos seus direitos humanos básicos, como o direito à vida, de acordo com o teor da sentença. Pelo que "basta" a palavra do juiz para domesticar a força da Natureza que, assim, se sente advertida a não pregar partidas aos cerca de 100.000 habitantes do pequeno Estado de Kiribati, no Pacífico. 

Colocando este problema em perspectiva, para sairmos do efeito micro que ele aqui encerra, importa equacionar a ideia de que os Estados estão hoje confrontados com desafios que não têm resolução nacional, mas exigem respostas à escala global a fim de defrontar resistências da parte de alguns Estados (como demonstra o tribunal da Nova-Zelândia), dado que a sua resolução implica, regra geral, uma ingerência em domínios fundamentais das soberanias estatais. 

Todavia, tal não significa que a resolução de casos como este implique a dissolução do Estado nacional mas antes a sua intervenção no processo de globalização do risco (segundo a teorização sustentada de Ulrich Beck, que aqui seguimos), o qual deverá pautar a sua acção através duma lógica cooperativa no seio da comunidade internacional com o sentido mais cosmopolita possível, que, por regra, a doutrina da Organização das Nações Unidas para estes casos de eventos extremos, postula. 

Torna-se, assim, necessário - e em ordem a resolver casos como o desta sentença bizarra do juiz neo-zelandês que só viu parte do problema, esquecendo-se que, num futuro próximo, os efeitos dessas mesmas alterações climáticas lhe podem "bater à porta", - a emergência duma consciência solidária (impositiva) de âmbito planetária que seja aceite e praticada pelo poder político no sistema internacional. 

Se assim for, sentenças bizarras como a do juiz da Nova Zelândia deixam de ter espaço legal, por ausência de fundamentação tecno-jurídica e até apoio ideológico na própria sociedade, e abre-se caminho, ainda que de forma gradual, para a construção de um modelo de Estado transnacional - que passará a negar ao Estado nacional aquele tipo de leis (porque contrárias ao Direito Internacional do  Ambiente e à principiologia que preside à gestão de catástrofes) - e a reconhecer a globalidade do fenómeno que comporta hoje uma complexidade na sua multidimensionalidade. 

Talvez este caso, que compulsa simultaneamente o Direito Internacional do Ambiente, os direitos humanos, a gestão de crises desencadeadas pelas catástrofes naturais e a política internacional - enquanto núcleo decisor de todas essas vertentes - venha a acordar a comunidade internacional para a urgência em organizar e revitalizar a componente transnacional do Estado - como condição para recriação da política e da sociedade civil global. 

O efeito prático desta reconfiguração política traduzir-se-ia na formação de Estados transnacionais - que passariam  a actuar de forma cooperativa (até com as activas Organizações Internacionais e ONGs - capazes de projectar uma dimensão humanitária nem sempre ao alcance do Estado, até por imperativos de natureza política) - e que estaria em melhores condições para exigir a adopção de novas normas e de medidas sociais e políticas amigas do ambiente.

Este desdobramento do Estado transnacional sobre o velho Estado nacional, mais limitado no seu campo de acção e incapaz de saber lidar com os novos desafios, implicaria, por outro lado, uma necessidade de regulamentações transnacionais, de novas convenções e de instituições internacionais para assegurar esses fluxos de informação emergentes que exigiriam um quadro de soberania cooperativa que hoje manifestamente não existe. 

Nesse novo contexto, a União Europeia teria uma função relevante, dado tratar-se duma organização de Estados que goza duma legitimidade política extrademocrática - cuja experiência, e apesar de actualmente ter perdido o seu poder e estatuto de bloco regional e ter ficado refém duma Alemanha poderosa, não tem paralelo com outros blocos regionais de integração supranacional. Daí defender-se que a União Europeia é, hoje, uma organização fértil para o desenvolvimento de um sistema de prevenção e gestão de catástrofes naturais susceptível de consubstanciar aquele modelo de Estado transnacional que passaria a actuar à escala planetária. Uma escala que, pela natureza das coisas, inviabilizaria ou colocaria out of law sentenças inimigas do ambiente (e das condições de vida dos habitantes de países ribeirinhos que vivem em permanente estado de alerta), como a que foi proferida por aquele juiz do tribunal da Nova-Zelândia. 

Em reforço desse desiderato para que essa nova ordem política internacional seja estabelecida, é necessário que dois factores - integradamente - consubstanciem a legitimidade extrademocrática da União Europeia (hoje já sem a sua componente solidarista, presente noutras fases da construção europeia). O primeiro desses factores, como acima sinalizámos, decorre da consciencialização que a magnitude dos desafios que os riscos da globalização colocam ao planeta (vector funcional); o segundo factor - é uma extensão daquele, manifestado pelo sentimento de solidariedade activa que deverá regressar ao agenda-setting dos povos europeus no quadro da matriz humanista e solidária que fundou o projecto europeu (assente na paz) no pós-II Guerra Mundial. 

Mas enquanto essa alteração de mentalidades não ocorre e encontra tradução adequada nas novas convenções internacionais decididas pelos poderes políticos legítimos, ou seja, pelo conjunto dos Estados no sistema internacional, é útil que se pense que o direito à água doce é um direito fundamental, até para assegurar a produção agrícola de que depende a sobrevivência humana, que é o que está ameaçar, de facto, os 100.000 habitantes do micro-Estado de Kiribati. Uma situação que está completamente fora do alcance do governo, incapaz de garantir as normais condições de vida das suas populações que vivem sob a permanente espada de damocles das alterações climáticas.

Provavelmente, esta sentença visa afastar um risco eminente: o de criar um novo tipo de refugiado (climático), que ainda não têm direitos reconhecidos pelas convenções internacionais. Daí, seguramente, as cautelas do juiz do tribunal neo-zelandês. Embora se trate duma situação em constante evolução, recorrente em inúmeros Estados que sofrem esse tipo de eventos extremos. Chegará o dia, pela força dos factos, que os tribunais sejam chamados a pronunciarem-se sobre a forma mais correcta de agir nesse tipo de situações extremas.

Seja como for, há males que vêm por bem, e o exemplo que aqui nos serviu para reflectir sobre este caso em que a sentença do tribunal neo-zelandês recusou o direito de asilo ao cidadão de Kiribati - decisão que já havia sido indeferida por um tribunal de instância inferior, e pelos mesmos motivos, constitua uma razão suplementar para desencadear o debate político e jurídico tendente à criação do sistema europeu de prevenção e gestão de catástrofes naturais. 
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Refª bibliográficas:

- Ulrick Beck, Risikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Moderne, Suhrkampf, Frankfurt am Main, 1986.
- Ulrick Beck, Was ist Globalisierung?, Suhrkampf, Franfurt am Main, 1998.
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Artigo do Público, 28/11/2013
http://www.publico.pt/ecosfera/noticia/tribunal-da-nova-zelandia-rejeita-primeiro-refugiado-climatico-1614337
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http://noticias.terra.com.br/ciencia/sustentabilidade/homem-pede-asilo-climatico-na-nova-zelandia,a56eff1ee56c1410VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html

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