Cultura e política: desdobramentos pessoanos na era da mentira política
Conhecemos a distância entre o anunciado e o realizado. Esse fosso em política é hoje brutal em Portugal. Por isso, os programas eleitorais com base nos quais os partidos políticos elegem os governantes não são cumpridos, deixando a sensação nos eleitorados de que as promessas presentes nos programas eleitorais têm apenas uma função transitória na eleição do primeiro-ministro que, uma vez eleito, se sente liberto para fazer tudo ao contrário do que prometeu ao eleitorado e ao país. Passa, assim, duma posição de responsável a um néscio inimputável.
Numa situação de depressão social e política, agravada pelo rolo compressor (fiscal), essa eficácia da máquina da mentira política (e burocrática) pode prolongar o desvio entre a promessa e o realizado até ao ponto do absurdo, de tal modo de que o que se anuncia já se situa fora do quadro de possibilidades de execução no momento em que é anunciado. A história da apresentação dos Orçamentos Gerais de Estado/OGE em Portugal tem sido assim nos últimos anos. Ora, este desfasamento entre a promessa e a realização gera uma descontinuidade que agrava a crise e provoca depressão social nas pessoas, nas famílias e nas empresas. O desemprego brutal, a retracção do consumo e a multiplicação do número de falências conduzem este processo de dilaceração social acelerado em Portugal.
Justifica-se, portanto, elaborar modelos de simulação dos comportamentos políticos e dos funcionamentos do sistema político e institucional, das condições de realização de programas políticos, a fim de comparar os resultados previstos ou simulados com o que são efectivamente os acontecimentos mais relevantes num determinado período da evolução de um sistema político em ordem a aferir o impacto desses desvios, ou efeito de anamorfose, numa dada sociedade. Neste particular, seria interessante no plano académico eleger o ciclo político inaugurado com o XIX Governo Constitucional, que teve início em 2011, e não sabe ainda quando cessa a respectiva legislatura.
Sendo certo que quando se fizer o acerto da simulação dos períodos históricos eleitos para análise, identificaremos a sequência efectiva dos acontecimentos e, por extensão, encontrar-se-á também a formula geradora desses acontecimentos, ou seja, ter-se-á identificado a matriz geradora dessas relações políticas, económicas, sociais e financeiras que produzem e reproduzem esses acontecimentos muito diferente do que tinha sido anunciado.
Aqui a vantagem seria não poder perpetuar a ilusão e a denegação ou a mentira, as quais acabariam confirmadas pela força dos factos. Nesta base, abria-se a porta à correcção das políticas públicas erradas, dos métodos e dos anúncios presentes nos programas eleitorais comunicados à sociedade. De tal modo, que o que se via após terem sido usados os modelos de análise política é diferente do que se viu da primeira vez, cabendo a estes modelos apenas a tarefa de tornar visível aquilo que na realidade já lá estava mas não tinha sido visto, porquanto os efeitos e as técnicas de ocultação, de denegação da realidade, enfim, de tudo aquilo que a mentira política encobria.
Na prática, os modelos não criavam uma nova realidade, mostravam apenas o que antes não se via. Sendo certo que depois de se ver aquilo que os modelos revelavam, os eleitorados jamais poderiam esquecer o que viram, e isso alteraria substancialmente as suas opções de voto em futuros actos eleitorais.
Também em termos de teatro, aquilo que Fernando Pessoa evoca no âmbito dos seus heterónimos, especialmente na famosa carta a Casais Monteiro, é a história do seu primeiro desdobramento, a do "Cavaleiro de Pas", em nome do qual, durante seis anos, escrevia cartas de si a si mesmo. Fazendo aqui o paralelo entre o mundo da mentira política, por força daquele efeito de anamorfose visto acima, e o signo da teatralidade, Fernando Pessoa constitui-se ao mesmo tempo sujeito e o objecto da acção e ainda o espaço da representação.
É nesses jogos que se encena a irrealidade do eu e dos factos, pois assim como o agente político pode simular uma realidade que não pode ser atingível no espaço e no tempo do seu mandato, também o poeta, o escritor, o dramaturgo podem criar paisagens, cidades, ruas, travessas, bairros cinzelados pela matéria da sua alma, cabendo nesse processo transitivo uma experiência que vai da ficção à realidade desejada e que foi normativizada nos textos que serviram de base aos programas eleitorais com que foram eleitos.
O problema é que no plano político esses erros penalizam a vida de milhões de pessoas e de empresas, enquanto que ao nível da representação teatral os danos são substancialmente menores em caso duma má representação.
Isto conduz-nos ao ponto de partida desta reflexão: por que razão os agentes políticos, da esquerda à direita passando pelo centro, sempre disponível para alianças, recorrem à ilusão, à denegação da realidade, ao espectáculo da distorção dos números, enfim, aquilo que se designa por mentira política?!
Uma das possibilidades de resposta radica na multidão de pessoas que somos, ou queremos ser, ou como diria Antero de Quental: una sola multitudine.
E tem sido este espectáculo, desde 1974, em contexto de democracia pluralista e num estado de direito, que se operou a brancura da escrita que revelou a multidão que efectivamente somos. A tal ponto que a teatralidade do espectáculo que fomos tecendo ao longo destas últimas três décadas pós-ditadura, revelou um facto terrível: ficámos prisioneiros do nosso inevitável transfert para o mundo ou a assembleia de heterónimos de Pessoa, ou o movimento inverso, i.é, do mundo de Pessoa para o nosso pobre mundo.
Se no mundo da literatura estes movimentos produzem resultados com impacto limitado na vida das pessoas, na vida política os portugueses estão confrontados com a realidade dramática em estado puro, e isso é grave porque confirma a dilaceração de todo um país, seja no seus aspectos materiais seja na estrutura da esperança da comunidade - que vive hoje o lugar do vazio de uma agonia humana sem precedentes nos últimos 40 anos em Portugal.
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