segunda-feira

O questionamento da democracia pluralista na República Imperial: o caso de Edward Snowden




A teoria da justificação intelectual deste ex-analista de informações que, na prática, traiu o seu país publicitando uma considerável massa de informações a que tinha acesso em resultado das suas funções, recoloca o velho problema do abuso de poder que os aparelhos estatais exercem sobre as respectivas populações. Ou melhor, no caso dos EUA, que é complexo, porquanto pratica o pluralismo democrático mas, simultaneamente, tem de gerir o maior sistema de espionagem (e contra-espionagem) do mundo.
 
De resto, este funcionário especial do Estado tinha a obrigação de saber que o fenómeno da espionagem luta - quase invisivelmente - contra outro fenómeno semelhante, mas de sinal contrário: o da contra-espionagem - ao qual, perversamente, acabou por servir com as fugas de informações de que foi deliberado autor, pondo em risco a vida de milhares de pessoas (seus concidadãos), dentro e fora dos EUA.
 
Se, por um lado, os Estados devem ter sistemas de intelligence para se defenderem dos perigos e ameaças modernos de natureza global, por outro, a administração desses controlos pelas agências de informação podem, não raro, cometer abusos contra os cidadãos, colocando em risco a sua privacidade minando a coesão numa sociedade. Ora, presumindo que não existe um estádio de (in)segurança absoluta, como defende Obama, há sempre um preço a pagar pelo valor da segurança possível.
 
Ora, aquilo que Edward Snowden fez perfila-se, por um lado, numa traição ao país que servia, por outro, numa aparente defesa dos mecanismos constitucionais da democracia pluralista que ele considera violados pelo facto de milhões de pessoas em todo o mundo, em particular concidadãos seus norte-americanos, estarem a ser expiados nas suas conversas e comunicações. E o que é mais curioso foi o modus operandi deste ex-analista: queixa-se que a América expia os seus cidadãos mas, ao mesmo tempo, comete crime de traição à  pátria, e, agora, pede asilo junto de um país do Oriente que o acolha e, porventura, acredite na liberdade de expressão e possa negociar a sua situação de extradição.
 
Estamos, pois, perante um problema complexo em democracia: por um lado, é desagradável saber que as pessoas, as redes sociais vêem violadas as suas comunicações, perdendo o seu direito à privacidade; por outro, é perigoso saber que os interesses legítimos de um Estado (dentro e fora das suas fronteiras) são postos a nú pela vingança de um seu técnico de informações que trabalha em condições de precariedade.
 
Neste quadro tão complexo quanto delicado, talvez fosse preferível que Snowden se demitisse e depois, fora de funções, fizesse as queixas ou denúncias que entendesse junto das entidades competentes. Naturalmente, não seria levado a sério nesse contexto. Promovendo as fugas de informação em contexto socioprofissional, incorre em crimes graves, ainda que com o fundamento de que o sistema de comando dessas agências de informação procedem a uma vigilância em massa às comunicações dos cidadãos.  
 
Em rigor, não será Edward Snowden ou as agências de informação os únicos responsáveis por estas contradições e por estas duplas traições à democracia pluralista, ao rule of law e à teoria da separação de poderes prevista pelos "pais-fundadores" da Constituição norte-americana, mas a própria configuração do edifício jurídico-constitucional e político da República Imperial, como Raymond Aron lhe chamava, que tem um vigilante que tende a não conhecer limites ao espaço de privacidade dos cidadãos em nome da necessidade da segurança da nação. Em rigor, em ordem a salvaguardar um bem considerado maior (a segurança interna e externa dos EUA), deverá sacrificar-se outros valores considerados menores.
 
No fundo, esta questão ocupou o pensamento dos grandes filósofos políticos de todos os tempos, a começar por Platão, que formularam a magna quaestio, vital à teoria do Estado: Quem vigia o vigilante?

Até Kant, cuja tese sobre a publicidade dos actos do governo como remédio para a imortalidade da política entendeu a abolição do recurso a espiões porque desonravam o Estado, acabou por considerar que o seu uso em tempo de guerra se alargaria também aos tempos de paz. Neste quadro, a espionagem é elevada à categoria de princípio geral de governo, a regra suprema não apenas das relações entre governantes e governados, mas igualmente das relações que os governados sustentam entre si, dado que o poder autocrático se baseia não só na sua capacidade de espiar os súbditos, mas também no auxílio que lhe é prestado pelos súbditos aterrorizados e que passam a espiar-se uns aos outros.  
 
Quis custodiet custodes?
 
A resposta comum a esta delicada questão de filosofia política e de teoria do Estado que afecta as liberdades das democracias contemporâneas, assenta na presunção de que essa responsabilidade radica num vigilante superior, que necessáriamente terá de violar a privacidade dos cidadãos e encontrar para esse direito de excepção uma fundada justificação, de que o terrorismo, a cibercriminalidade e outras ameaças e riscos maiores de natureza transnacional, representam hoje essa grande justificação para violação da privacidade dos cidadãos.
 
 
 

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