terça-feira

A Política enquanto tentativa de civilizar e configurar o futuro


Não é novidade para ninguém que a arte política se preocupa com a pilotagem do futuro, com a antecipação   dos problemas e a necessária capacidade de resposta para os resolver em tempo útil. Uma geração de cientistas sociais norte-americanos, e não só, dedicaram muitos dos seus trabalhos a essa longa teorização. Karl Deutsch (em especial no seu livro, The Nerves of Government), David Easton, Robert Dahl foram (e são) algumas dessas referências científicas que procuraram demonstrar que, entre outras coisas, a autonomia do processo político consiste em converter a informação em poder. 

A esta luz, a Política é (ou devia ser), não só, a actividade mais nobre de todas, como também uma tentativa de civilizar o futuro. Ou, pelo menos, de impedir a sua colonização por um passado esmagador, em que o seu peso ideológico reforçado pelo monopólio de dois partidos, no caso português, acaba por condicionar o progresso da nação e o bem-estar do seu povo. Se atentarmos nos problemas correntes do Portugal de 2013 são, em boa medida, os constrangimentos resultantes de erros cometidos no passado recente. 

E se recuarmos a 2006 verificaremos que os problemas aí herdados foram uma herança do passado que antecedeu esses anos, encontrando-se sempre razões, contextos, factores e variados constrangimentos culturais, sociais, económicos e financeiros que ajudam a explicar por que razão Portugal é, neste 1º quartel do séc. XXI, um país pouco transparente, corrupto, excessivamente burocrático, demasiado imposteiro (pela elevada carga fiscal) que afasta qualquer investimento directo estrangeiro que demande Portugal para aqui criar riqueza, emprego e bem-estar.

Apesar de tudo, e avaliadas as dificuldades inerentes ao nosso processo de integração europeia, e as diferentes velocidades e ritmos de competitividade das várias economias que passaram a viver em regime de economia aberta, a política ainda conseguia modelar o futuro e tomar decisões em função desse planeamento político. Ou seja, a política era uma tecnologia capaz de conceber e de articular um conjunto de objectivos e de os por ao serviço de uma finalidade comum. E através desse processo de esperança, a política era o núcleo coordenador das várias expectativas individuais que se compaginavam com o progresso colectivo. Neste caso, a política era um configurador de futuro, porquanto entre a concepção dos objectivos e a obtenção dos resultados tendiam a coincidir no espaço e no tempo, ainda que as economias europeias apresentassem entre si diferentes níveis de desenvolvimento e de adaptabilidade à conjuntura de globalização competitiva que sobreveio com a década de 90 (do séc. XX findo).

Naturalmente, na chamada fase da política que podemos designar pré-globalização, os Estados dispunham da capacidade de desvalorizar a moeda e de fazer acertos cambiais para facilitar as exportações. Hoje, ao invés, a privação dessas (e doutras ferramentas) de soberania económico-fiscal, impedem os Estados dessa agilidade para configurar o futuro através da manutenção de padrões de crescimento, modernização e desenvolvimento no interior das nações. 

A pergunta que aqui legitimamente se coloca é a de saber por que razão ocorre esta perda de relevância da esfera política, fazendo com que ela não consiga mais configurar o futuro e de oferecer um horizonte de expectativas e de esperança às populações. Que razões, em síntese, estão na base desta nova impossibilidade da política sobre a realidade que a rodeia?

Por um lado, a privatização da vida social; por outro lado, o assédio cada vez maior de outras esferas públicas com poder crescente na sociedade, como a economia, a comunicação, o direito -  que pretendem torna fútil a política, justificando essa pretensão segundo a ideia de que essa arte nobre já não consegue mais gerar a transformação social desejada. 

Aliás, os resultados das sondagens e dos inquéritos feitos às populações revelam a sustentabilidade dessa teorização, segundo a qual os jovens (e também os segmentos séniores da população) estão, por um lado, mais apostados na realização pessoal e na concretização dos objectivos individuais do que na realização do chamado projecto nacional. O qual, em rigor, se desconhece hoje qual seja em Portugal. Mais Europa? mais lusofonia? mais atlantismo (norte e moreno)?

Significa isto que os projectos das pessoas, enquanto soma individual da sociedade, estão cada vez mais desligados do tal projecto nacional comum que as autoridades políticas, mercê da depressão económica e da qualidade das próprias elites políticas, se revelam incapazes de definir, estruturar e realizar em nome do bem comum da nação. 

A consequência deste desfasamento entre os projectos individuais e o proclamado projecto nacional passa a repousar naquilo que podemos designar de pessimismo colectivo ou desesperança, uma vez quebrada a linha do horizonte. Até a própria ideia de felicidade, de utopia sofreu um reajustamento por força daquele desfasamento e da privatização do futuro que passou a ser desenhado na cabeça de cada pessoa, e não concebida em nome do Estado - enquanto representante de um povo e da sua coesão nacional. Assim, a esperança, o futuro, o sonho, a utopia, enfim, a ideia (privada) de felicidade passaram a ter uma existência fragmentada e plural que não coincide mais com aquilo que seria suposto o Estado conseguir estruturar em nome do bem geral da colectividade.

Temos, assim, uma ideia privada de felicidade que não coincide mais com a oferta que o Estado faz aos seus cidadãos. Até porque os cidadãos encaram o Estado como aquele agente que lhes cobra os impostos, espoliando-os por erros clamorosos de gestão de políticas públicas, e lhes subtrai os direitos sociais adquiridos, como o direito à Educação, à Saúde e ao estreitar do campo de oportunidades que se veio a consolidar desde 1974 em Portugal.

Daí ser comum, sobretudo entre os mais jovens, dizer que o destino colectivo está entregue à fórmula do salve-se quem puder no seio das forças anónimas da globalização predatória (expressão do internacionalista R. Falk) em curso, agravada com a brutal carga fiscal que o Estado pratica entre nós. 

Daqui ressalta uma conclusão esmagadora: temos uma sociedade e uma economia sem política, sem esperança colectiva e incapaz de imaginar e de promover um futuro comum alternativo. Da política aquilo que os cidadãos esperam é o que pretendem evitar: mais e mais impostos, o que asfixia a vida às empresas, que abrem falência a uma velocidade alucinante, e limita o campo de oportunidades pessoal, o que obriga as pessoas a emigrar. Aliás, os portugueses em concreto têm sentido na pele a incapacidade do Estado dinamizar as oportunidades de trabalho e de realização pessoal, cuja força transformadora é, doravante, obtida extra-muros. Ficando o Estado preso à amálgama de teias burocráticas, défice público, corrupção, gestão ruinosa, más políticas públicas mais um role de factores que justificam a tragédia dos comuns em que vivemos.

Por outro lado, a política é também amputada pelo poder dos mercados, pelo poder mediático e do sector financeiro e também por uma certa judicialização da vida pública nacional. A política revela aqui toda a sua fraqueza perante esses formatos emergentes e entidades cujo rosto e acção é difícil de ver e de responsabilizar. Ou seja, enquanto que o cidadão deseja que o Estado consiga responsabilizar todas essas novas entidades, são, ao invés, essas novas entidades que esmagam o poder do Estado na sua acção corrente, tornando-o refém daqueles interesses corporativos. E é esta debilidade revelada pela política que impossibilita a acção política de ser aquilo que sempre foi: o agente transformador da dinâmica e da ordem social. Cabendo ao Estado fazer reformas sem esmagar as pessoas, as empresas e definir um desígnio nacional que sirva de guia ao futuro.

Foi esta função maior que o Estado deixou de ser capaz de assegurar. 

Desse modo, importa perguntar ao Estado - e à política em particular - o que temos hoje? senão reformas que trituram pessoas; reformas que operam como verdadeiros confiscos e esbulhos fiscais; falsas elites que se apoderaram do aparelho de Estado em nome de coisas nenhuma; em nome da ingovernabilidade; duma fé cega assente na austeridade que leva a mais depressão e agravamento da procura e do consumo interno. Em suma: em nome de um poder autor duma evolução sem destino nem plano. Dum projecto sem finalidade e causa.

Ora, isto é o contrário da política e do que através dela se pode (e deve) conseguir enquanto esforço de transformação da sociedade. O que comete à política uma tarefa e uma missão que ela não tem tido nos últimos anos entre nós: recriar o destino e conceber um mundo com mais igualdades de oportunidade, ainda que vivamos num mundo em que os recursos são limitados e cada nação tenha, naturalmente, o seu próprio ritmo de crescimento, modernidade e desenvolvimento no quadro dos blocos geoeconómicos onde se insere. 

Creio que tem sido esta paixão e visão que tem faltado às elites decisoras nacionais, incapazes de combinarem os objectivos com os meios e as finalidades últimas para a consecução de um ideal e de um desígnio. 

Afinal, qual é o ideal de ser português em Portugal neste 1º quartel do séc. XXI!?


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