terça-feira

A crise do Estado nacional em face da Globalização competitiva - Rui Matos -





Síntese da Tese de Doutoramento defendida no UTL-ISCSP/2004 na especialidade de Ciência Política

Autor: Rui Matos

 

A crise do Estado nacional em face da Globalização competitiva

 

Resumo: Este ensaio visa debater a crise do Estado nacional à luz da configuração da globalização competitiva (GC) e evidenciar a crise de modelos em que repousava a estrutura do Estado nacional clássico. Estruturámos o ensaio em 9 ideias-força: 1) a modernidade e a reflexividade trazida com a GC; 2) a perda progressiva dos dispositivos do Estado na regulação e proteção dos mercados internos e a sua incapacidade em ser o promotor da modernização; 3) a dissolução da relação harmoniosa dos três elementos clássicos do Estado (1+1+1 = território, população, poder político, segundo o modelo de Westphalia/1648); 4) a responsabilidade do analista e do político; 5) a fragmentação dos territórios e dos protecionismos e os novos mapas cromáticos do desenvolvimento das nações; 6) a gestão democrática em níveis diferenciados de desenvolvimento e a dualização das sociedades; 7) o espartilho do ideal europeu, a política e o cinismo na formação das políticas públicas e a oscilação dos comportamentos dos eleitorados; 8) personagens e protagonistas, o princípio da popularidade e o princípio da responsabilidade; 9) a criação do Estado-rede, configuração política emergente. Uma vez que o Estado não desaparece, urge identificar a configuração em que se transforma mediante o impacto do processo de GC, que deverá ser reconhecido como o novo produtor de racionalidade estratégico gerado na economia global.

Palavras-chave: crise do Estado nacional, globalização competitiva, Estado-rede

 

 

 

ÍNDICE

 

1. A modernidade e a reflexividade. Teses nucleares da globalização.

1.1. A crise do Estado nacional.

2. O problema do Estado nacional face à evolvente: transformação dos instrumentos na antecâmara da globalização.

3. Dimensão estratégica em curso: a globalização competitiva (GC). O analista e o político.

4. Globalização entre espaços competitivos, fragmentação dos territórios nacionais e dissolução dos protecionismos. Os mapas cromáticos.

5. Gestão democrática em espaços de desenvolvimento diferenciados. A dualização das sociedades.

6. Vulnerabilidade da Europa em contexto de Globalização competitiva. A política e o cinismo.

7. Personagens e protagonistas perante a modernização, a crise e a globalização.

8. O Estado-rede: a configuração política emergente.

 

 

1.    A modernidade e a reflexividade. Teses nucleares da globalização.

 

Analisar a crise do Estado nacional à luz da globalização competitiva (GC) na contemporaneidade é um exercício que implica duas tarefas:

 

1) descontextualizar o Estado enquanto sistema social e político clássico, tal qual o conhecemos, com um território, um povo e instituições políticas próprias;

2) situar o advento da modernidade, enquanto variável universalizante e de consequências perturbadoras que liga acontecimentos, riscos e pessoas entre si.

Essa reflexividade da vida social e política moderna consiste no facto de as práticas sociais serem permanentemente examinadas e reformadas à luz da informação adquirida sobre essas mesmas práticas, alterando constitutivamente o seu caráter. Cumpre sublinhar que o papel das ciências sociais e humanas (CSH) está intimamente implicado na modernidade, dado que a revisão constante das práticas sociais, à luz do conhecimento sobre essas práticas, integra o tecido conjuntivo das instituições modernas[1].

Nesse âmbito, todas as CSH participam nessa relação reflexiva. Tomemos como exemplos os seguintes conceitos: “mercados”, “investimento”, “capital”, “indústria” e, mais contemporaneamente, as “agências de rating”, as “contabilidades criativas”[2].

Aquela primeira categoria de conceitos foi formulada para analisar as mudanças envolvidas nas instituições modernas, mas a segunda categoria já procura responder a outro tipo de exigências da vida e da atividade económica pós-moderna. Ou seja, os conceitos não são independentes das atividades dos acontecimentos a que se reportam, influem neles.

 

No quadro 1 sumariamos alguns conceitos operacionais da globalização, reveladores da multiplicidade de sentidos que o fenómeno comporta.
 

Quadro 1 – Conceitos nucleares relativos à globalização[3]


1.    A globalização consiste na transformação da geografia social marcada pelo crescimento dos espaços supraterritoriais;
2.    contudo, a globalização não acarreta o fim das geografia; a territorialidade e a supraterritorialidade coexistem no quadro de interrelações complexas;
3.    apesar da globalização remontar a centúrias passadas, o seu padrão moderno de comportamento intensificou-se, sobretudo, desde 1960;
4.    a globalização interfere na vida de todas as pessoas, no âmbito local e à escala global, num processo ilimitado;
5.    por outro lado, a globalização assume um caráter multifacetado e tem causas dinâmicas, sendo que o racionalismo do conhecimento, a produção capitalista, as inovações tecnológicas e as medidas de regulação de natureza estatal;
6.    a natureza da globalização convocou importantes mudanças em certos conceitos: no capital, no Estado, na nação e na racionalidade moderna, logo, na reflexologia e na apropriação reflexiva do conhecimento e no modo como ele (re)produz ciência e na sociedade;
7.    complementarmente, a globalização encorajou novas configurações sociais que vão além do Estado e das comunidades que atualmente escapam à definição clássica da nação;
8.    a globalização tem consequências positivas relativamente à regeneração cultural, às comunicações e ao seu papel nas sociedades, à descentralização do poder e à eficiência económica;
9.    todavia, as políticas neoliberais comportam inúmeras consequências negativas relativamente ao aumento da degradação ecológica, à pobreza persistente, à degradação das condições de trabalho, às múltiplas violências culturais, às desigualdades sociais e ao défice democrático;
10.     a globalização, de per se, não é boa nem má; os seus resultados dependem largamente das decisões humanas, que podem ser debatidas e alteradas.
 

Deixámos de fora do quadro 1, porventura, o modelo de análise mais potente da globalização, da autoria de David Held e Anthony McGrew, assente nas formas históricas da globalização e nas suas dimensões espacio-temporais: 1) extensão global das redes; 2) intensidade global das interconexões; 3) velocidade dos fluxos; 4) e impacto global para a interdependência. Ao nível da dimensão organizacional: 5) infra-estrutura da globalização; 6) institucionalização das redes globais e exercício do poder; 7) modelo de estratificação global; 8) modos dominantes de interação global).

Assente nessas oito variáveis, os autores construíram o modelo de análise que avaliou a globalização, com base no qual mapearam as configurações do mundo globalizado e, simultaneamente, derivaram o debate para além da perspetiva económica que o tema encerrava até então[4].

A globalização afigura-se, assim, como um grande debate, acelerado pela “interdependência dos fluxos” globais, pela “ação à distância”, pela “compressão da relação espaço-tempo”. Nesta perspetiva, a globalização emerge como um continuum das esferas local, nacional e regional, ou seja, como uma espécie de cluster funcional de Estados, sociedades, economias, atores não governamentais que podem ser identificados em termos de características comuns (culturais, ideológicas, religiosas, funcionais) e também por um elevado nível de interação relativamente ao sistema internacional.

A globalização, expressão primeiramente cunhada por Oliver Reiser na sua obra pioneira, Planetary Democracy[5], pode ser definida como “um processo (ou conjunto de processos) que corporizam a transformação ao nível da organização espacial e social de relações e transacções avaliado em termos de extensão, intensidade, velocidade e impacto gerando fluxos e redes de actividade de âmbito transcontinental e interegional, interacções e exercício de poder[6].

No limite, aquele que impõe o padrão da norma competitiva que estrutura a globalização diz respeito a uma expansão de escala, na qual o poder é organizado, hierarquizado e exercido. Trata-se, assim, da extensão global das redes e da racionalização dos circuitos do poder, que faz dele um atributo essencial da globalização.

  

1.1         A crise do Estado nacional

Nesta avaliação, não se trata apenas da crise dos poderes políticos tradicionais do Estado, embora seja essa a evidência mais imediata notada pelas populações e pelos eleitorados. É também o resultado da ineficácia das suas estruturas organizativas clássicas que é questionada, as quais foram desenhadas e instaladas no seio da infra-estrutura do Estado num contexto histórico em que as tecnologias dominantes eram muito diferentes, ainda resultado da era industrial, que obedecia a cadeias de comando do tipo das organizações militares, sujeitas a relações de autoridade muito hierarquizadas.

Esse modelo verticalizado de poder no aparelho do Estado fundamentava-se no valor da segurança para os que integravam o velho Estado, que, por sua vez, encobria as deficiências individuais no cômputo das estatísticas globais.

Nessas condições de escasso rigor e de opacidade, as avaliações competitivas entre as nações ou eram inexistentes ou insuficientes, apenas se valorizavam as rotinas nos seus processos de funcionamento, o que também contribuiu para que o Estado fosse perdendo eficiência à medida que atingia a fase de maturação.

Daí que a perda progressiva de poderes do Estado nacional seja, assim, amplificada pela perda de eficiência das suas organizações e agravada pela rigidez dessas grandes estruturas organizativas do Estado, que são, na prática, mais consumidoras de recursos do que fatores de modernização.

Consequentemente, o Estado perde a sua eficácia em duas frentes:

1) na incapacidade de proteger os mercados internos (seguindo o tradicional protecionismo) e por não dispor de meios adequados para intervir como promotor da modernização;
 
2) o Estado nacional emerge como um obstáculo efetivo ao desenvolvimento, pela sua própria macrocefalia. A sua dimensão e escala afetam mais de metade dos recursos nacionais produzidos, sem os poder utilizar na economia competitivamente.

Daqui decorre uma evidência: as organizações do Estado há muito que deixaram de ser modelos ou referências a seguir por outras organizações, bem pelo contrário, qualquer estratégia de modernização, com exceções, que subscreva os padrões das novas tecnologias e as boas práticas da administração esbarra na condição de partida, ou seja, na necessidade de redimensionar as organizações tradicionais do Estado, o que, em inúmeros casos, implica o seu desmantelamento e a transferência/privatização dessas atividades de “economia social”.

Essa passagem da economia social para uma economia pura de negócios gera uma grande incerteza e instabilidade por via da frustração das expetativas das populações, pelo menos, a dois níveis:
 

1.           Dos que integram essas empresas públicas (que passarão a privadas) e a quem não foram oferecidas oportunidades de adaptação à envolvente;

2.           Do lado dos consumidores/utentes desses serviços que também não beneficiam das supostas vantagens da livre concorrência, pelo abaixamento dos preços desses serviços. (...)
 

2. O problema do Estado nacional face à evolvente: transformação dos instrumentos na antecâmara da globalização


A validade dos modelos de análise, eficazes na identificação do desvio relativamente ao que seria a rota de equilíbrio no contexto da estrutura da ordem política anterior, em que o Estado emergia numa relação harmoniosa de 1+1+1, esfumou-se ou passou a ser ilusória, porque o tipo de instrumentos políticos que tais modelos consideravam para realizar programas de correção desses desvios também já se transformaram em resultado da mudança em curso.

Tal significa, no plano analítico, e à semelhança das construções ideológicas que difundem normas orientadoras para as massas sociais, que os modelos de análise que vinham do passado, por terem desaparecido as condições anteriores, perderam potencial explicativo.

O exemplo mais notório dessa mudança reside na identificação das atuais condições operatórias do Estado nacional. Esse foi o dispositivo político e institucional de valor estratégico na orientação das sociedades desenvolvidas e foi em relação a ele que se formaram as expetativas dos grandes agregados humanos e as redes de interesses organizados.  

Foi notória a perda progressiva de eficácia das condições de funcionamento do Estado nacional em relação aos mercados, à garantia dos contratos e dos equilíbrios sociais e à soberania nacional, segundo a tradicional relação harmoniosa do modelo weberiano.

Ora, é esse desencontro entre o passado e o presente no funcionamento dos dispositivos do Estado nacional que permite visualizar e densificar a crise, a qual se agrava na medida em que ainda não foi resolvida com a configuração de novos dispositivos que possam substituir os anteriores.

Esse gap dá-nos a dimensão estratégica da mudança em curso.

 
3. Dimensão estratégica em curso: a globalização competitiva (GC). O analista e o político

O conceito de globalização tem múltiplas aceções, utilizamo-lo aqui para referenciar a perda progressiva de relevância dos espaços nacionais e da instituição política que os regulava: o Estado nacional.

Mas nem o Estado nacional tradicional, nem o clássico padrão de globalização de conjunturas anteriores podem ser aferidas apenas pela maior intensidade dos fluxos de circulação dos capitais, serviços, mercadorias com vista à integração das economias nacionais em mercados cada vez maiores (regionais, continentais, globais).

Se afinarmos por esse padrão, seria possível encontrar noutras épocas, designadamente após a segunda metade do séc. XIX e inícios do séc. XX, fluxos de intensidade comparável e dos quais resultou uma mudança: os investimentos nos EUA e na América Latina, os empréstimos à Rússia, os movimentos de capitais no seio das redes coloniais. Todos esses fluxos atingiram volumes elevados e, não obstante, a relevância do Estado nacional manteve-se, e iria acentuar-se durante o séc. XX, na sequência das duas guerras[8].

Com efeito, após essas guerras, foi possível recuperar desses desequilíbrios e retomar o crescimento anterior que integrou a estrutura da ordem política precedente. A novidade traduziu-se em novas hierarquias e polaridades, dado que o centro hegemónico do mundo transferiu-se da Europa para os EUA, vencidos que foram os projetos imperiais alemão, soviético e japonês.

Então, se estamos diante de uma nova configuração política, cumpre questionar: em que reside a novidade na atual conjuntura?

Explorando os sinais existentes da globalização em curso, caímos na formulação inicial, ou seja, quando comparamos o estatuto e o funcionamento das condições do Estado nacional nas duas conjunturas, verificamos que a diferença entre os processos dos séculos XX e XIX reside na perda de eficácia do Estado nacional, o qual controlava o dispositivo político fundamental que permitia garantir a articulação entre a razão de Estado (Maquiavel) e a razão analítica, e que era, simultaneamente, o quadro de legitimação do poder e servia para responsabilizar os agentes políticos.

Naturalmente, o peso da história geral da Europa não pode ser negligenciado nestas articulações sobre a evolução do Estado nacional, já que as configurações de sucessivas ordens mundiais até ao presente foram sendo realizadas quando ainda inexistia o Estado nacional (weberiano), tal qual o conhecemos hoje, embora já houvesse centralização do poder (dinástico).

Esta asserção serve para sublinhar que o desenvolvimento do Estado nacional ocorreu primeiro na Europa, porquanto se inseriu no quadro das condições de dominação que essa primeira globalização (a expansão europeia, em boa parte dinamizada pela gesta dos Descobrimentos portugueses no séc. XV) partilhou com as sociedades europeias, de que resultou a rede de relações dos impérios coloniais.

Sucede que a articulação entre a primeira grande corrente de globalização, aqui associada à expansão europeia e acompanhada do desenvolvimento do Estado nacional, não foi inteiramente intuída pelos agentes políticos da época.

A segunda globalização resultou da inovação tecnológica com o domínio da energia, aberta com a revolução industrial que transferiu para o Ocidente a superioridade na produção, que antes se localizava a Oriente, e também a superioridade militar, justamente porque também os meios de guerra se industrializaram.

Daqui resultou que o domínio da energia e da industrialização, no campo tecnológico, ficou associado ao domínio colonial, que permitiu aos Estados um poder efetivo de proteção dos mercados nacionais e coloniais em que assentavam as relações económicas internacionais.

Contudo, atualmente, a Europa já não está confrontada com uma guerra religiosa nem empenha todos os seus recursos na busca duma vitória do catolicismo[9].

A liquidação dos impérios coloniais também já se operou e a dominação mundial deixou de ser bipolar, como foi durante quase meio século de Guerra Fria, explicado por Raymond Aron no seu magistral Paix et Guerre, e passou a ser multipolar[10].

Com esta breve digressão à história geral da Europa, sublinhamos o ponto proposto: o Estado (weberiano), centro de relações coloniais e delimitador de territórios onde impunha as suas normas de regulação, é questionado após a II Guerra Mundial; primeiro através da descolonização, depois com o processo de globalização emergente, que neutraliza as possibilidades de regulação dos poderes nacionais, de Ocidente a Oriente.

Dito isto, é útil inquirir se é possível atribuir à fase ulterior da globalização a característica da vitória do capitalismo?!

Não deixa de ser irónico que a atual globalização, mais do que capitalista ou socialista, é anti-nacionalista, dado que é contrária à delimitação dos territórios em espaços nacionais.

Também aqui a globalização, por via da comunicação instantânea proporcionada pelas novas tecnologias da comunicação, dissolveu as diferenciações de base territorial, como a primeira globalização da circulação de pessoas e bens, e anulou as distâncias que preservavam o isolamento cultural e biológico de grandes regiões da fase pré-Descobrimentos, em que demos novos mundos ao Mundo, como narrou Camões, um dos pioneiros, sem querer, da globalização (competitiva)[11].

Presentemente, ao modelo de Estado nacional, habituado a gerir os seus recursos com base nos valores da segurança, da proteção e dos equilíbrios sociais numa lógica distributivista garantida pelo Estado social, sucede um outro modelo de Estado, obrigado a gerir o risco, a competição, a dominação.

São esses dois conjuntos de valores políticos em conflito que estruturam o novo campo de ação política do sistema internacional em contexto de GC.

 Contudo, essa mudança afigura-se mais complexa para os agentes políticos, que têm de comunicar com os interesses organizados e, simultaneamente, comunicar decisões problemáticas à sociedade.

 

4. Globalização entre espaços competitivos, fragmentação dos territórios nacionais e dissolução dos protecionismos. Os mapas cromáticos.

 

Os historiadores não precisaram mais de inventar o mundo, a fim de estudar a história mundial. O mundo existe como facto material e como prática diária na organização global da produção e da destruição[12].

 

C.Bright e M. Geyer

 

Vimos que um dos efeitos mais imediatos da globalização é a dissolução das fronteiras, a perda de diferenciação do que antes era garantido pelas intervenções estatais, de tipo protecionista, num processo de permanente competição internacional que culminou na criação dos impérios coloniais.

Constatou-se também que a tecnologia da mobilidade gerou um novo tipo de dinâmica política com repercussões espaciais, mormente ao nível da contração da relação espaço-tempo, o que permitiu a formação de espaços atrativos para o desenvolvimento de atividades e fixação de capitais, indispensáveis aos processos de modernização nas sociedades.

Pelo contrário, a ausência daqueles fatores no interior das sociedades torna esses espaços nacionais e essas economias patamares repulsivos de fatores de modernidade, onde se acumulam fatores de risco e incerteza e, consequentemente, intensificam pressões por parte dos grupos sociais descontentes que esperam (em vão) proteção do Estado.

Ao verificar que o Estado, por crescentes dificuldades de “viabilidade” e de “sustentabilidade” económica, não consegue mais garantir esses equilíbrios sociais, tais grupos sociais passam a assumir-se como vítimas da modernização relativamente a um Estado que os abandonou e não os consegue mais ajudar ou integrar na sociedade, que seria suposto devolver-lhes a dignidade através do emprego e do salário condignos.

Esta é, de certo modo, uma novidade na conjuntura e na reorganização política do Estado na sua relação com os seus cidadãos/eleitores inédita nos tempos modernos, representada numa dupla incapacidade:


1) a limitação de o Estado reorganizar a estrutura produtiva da economia nacional, a fim de a tornar ajustada às novas condições competitivas;
 

2) e a incapacidade de o Estado – pela via política e normativa – adaptar as economias nacionais à fragmentação dos espaços nacionais que tinham sido tradicionalmente organizados no quadro do processo de centralização do poder.

Aliás, é curioso notar que a atual configuração de poder gerado pela GC, que se intensificou com os desafios internacionais na dobra do milénio, numa lógica de complexidade crescente, não deixa de apresentar similitudes com a estrutura espacial da Idade Média, dado que em ambos os casos, salvaguardadas as devidas especificidades, a tal garantia de proteção concedida pelo Estado passou a ser assegurada, em inúmeros casos, por uma economia paralela, leia-se, por economias clandestinas e também por instituições privadas legítimas, como seguradoras, bancos, fundos de pensões.

Esta alteração da perceção do risco resultou da circunstância de os cidadãos reconhecerem que o Estado, a partir de certo momento, deixou de ser uma pessoa de bem e não se encontra mais em condições de honrar os seus compromissos.  

Daí resultou uma desconfiança progressiva que afastou o cidadão do Estado, justificada pela invocação da crise de viabilidade e de sustentabilidade, o que configura um quase regresso primitivo às formas pré-estatais e pré-capitalistas da civilização moderna.

Por contraponto, e na sequência do paralelo entre o modo de funcionamento dos dispositivos do Estado moderno com os seus equivalentes funcionais na Idade Média[13], as condições pós-estatais e pós-industriais das sociedades contemporâneas obedecem a regras diferentes.  

Quer dizer, a formação dos espaços competitivos emergentes confere ao Estado nacional preocupações acrescidas na definição das suas políticas públicas, as quais passam a ser elaboradas mediante uma nova cartografia, onde o problema das fronteiras territoriais, delimitadoras dos níveis de modernização e desenvolvimento, perdeu grande parte da sua anterior relevância.

A consequência dessa mudança é que os novos mapas políticos, que ditam o sucesso (Estados globlizantes) ou insucesso (Estados globalizados)[14], subscrevem outro tipo de mapas, desafios e prioridades.  

Estes são compostos por uma paleta de cores no caleidoscópio das relações de poder, elaborados em função dos níveis de concentração ou dispersão dos tais fatores de competitividade e de atratividade que conferem importância estratégica a um dado espaço nacional, por oposição a outro espaço nacional que não disponha desses fatores de poder.

Temos assim os grandes Estados, de dimensão continental, como os EUA e alguns Estados da União Europeia. Noutra latitude, o Brasil, a Rússia, a China, que poderiam prefigurar na tipologia de Estados poderosos, ricos e influentes, identificados com uma só tonalidade, porquanto concentram em si recursos e fatores de poder que os tornam atrativos e competitivos e, nessa medida, poderiam ser tipificados como Estados globalizantes, impondo a terceiros os seus padrões e ritmos de modernização e desenvolvimento.

A esta luz, em vez dos velhos mapas geográficos, que sinalizaram o índice de desenvolvimento das nações em função do seu peso populacional e dimensão territorial, o sistema de poder atual desenha mapas políticos de natureza cromática, cabendo às cores a definição da hierarquia de cada ator dentro da nova ordem de poder no sistema de relações internacionais.

Desta feita, os novos mapas de desenvolvimento conhecem uma variação no seu ordenamento interno; em função não já de critérios de identidade nacional clássicos, mas em função da capacidade que cada Estado nacional tem para atrair os fatores de competitividade.

Pelo que a integração dum Estado nacional num espaço politicamente identificado como espaço cultural comum, por força da convergência de identidades de religião e de instituições políticas comuns, já não constitui um fator de identidade ou mesmo de referência patriótica que garantia direito de proteção e de solidariedade do Estado. 

Nesse sentido, a cartografia emergente com a GC, sinalizadora dos índices de desenvolvimento e de competitividade, constitui-se, simultaneamente, no alfa e ómega das diferenciações sociais, económicas e financeiras do sistema internacional, tendo como consequência acentuar a diferenciação e a polarização entre grupos e classes sociais: os integrados e competitivos por oposição aos excluídos e dependentes do sistema.

Essa dependência é agravada pelo fiasco do ultraliberalismo, denunciado por autores como J. Stiglitz e Viviane Forrester. Ambos criticaram esse sistema e programa ideológico que empurrou milhões de pessoas para o desemprego em todo o mundo, baseado no dogma (ou na ilusão) de que o capitalismo se auto-regularia. Porém, a economia não obedeceu a essas profecias neoliberais e os mercados demonstraram a sua incapacidade de se gerir a si próprios, de controlar as expetativas que suscitam nas sociedades e de dominar as reações que desencadearam[15].

Noutra passagem do livro, L´Horreur Économique, Forrester, afirma: (..) Multidões de seres que lutam, solitários ou em família, para não se degradar, ou pelo menos só em parte, ou só a pouco e pouco. Sem contar, na periferia, com os que, incontáveis, temem cair nessa situação e correm esse risco[16].

Concomitantemente, esta reorganização dos espaços nacionais pela envolvente da GC, que decorre dos efeitos da tecnologia da mobilidade, não traduz apenas as clássicas diferenciações territoriais, ela espelha também uma reorganização dos espaços urbanos no seio das grandes cidades europeias, aquilo que se designa por isomorfia na escala de relações sociais contemporâneas. 

Ao nível societal, a reorganização das cidades e dos espaços urbanos em razão do grau de integração das populações residentes em função do seu posicionamento na escala da competitividade reconhece que os tradicionais poderes do Estado nacional, assente na igualdade e na universalidade de direitos, só muito dificilmente poderá continuar a validar tais valores e a garanti-los às populações, na senda da princípio da solidariedade.

É com base nesse constrangimento que o Estado nacional deixou de conseguir assegurar o apoio às populações mais desfavorecidas nos moldes em que o fazia no passado recente, na medida em que tinha uma economia a crescer a um ritmo crescente.

A não ser que o Estado, para realizar aquelas políticas de solidariedade, aceite o risco de compensação social, com manifesto prejuízo dos indicadores de competitividade das suas cidades mais competitivas?!

Esta equação suscita uma sub-questão não menos importante, a de saber como se assegura a gestão democrática dos espaços nacionais, com uma economia dual e assimétrica, quando o Estado nacional já não é o único promotor da convergência das condições de modernização, de transferência e de distribuição de recursos enquanto fatores de correção das desigualdades sociais no quadro dos espaços nacionais.

 
5. Gestão democrática em espaços de desenvolvimento diferenciados. A dualização das sociedades.


De modo que, após passar a minha vida estudando e lutando para modificar o meu país, quando enfim chego à Presidência, agora me dizes, Manolo, que o Estado perdeu a sua capacidade de acção. Obviamente, não posso aceitá-lo.

(Fernando Henrique Cardoso, in Seminário da Fundação Alexandre Gusmão, anteriormente à sua posse como Presidente do Brasil, 1º de Dezembro de 1994, e referindo-se a Manuel Castells).

 
É sintomática esta declaração do ex-Presidente da República Federativa do Brasil, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que se dirige ao seu colega Castells, cuja obra revolucionou a forma de pensar o Estado e as organizações em contexto de globalização competitiva[17]. Feita à época, aquela formulação assume, simultaneamente, um caráter inconformado e premonitório, como que antecipando o risco, a incerteza e a turbulência posteriores.

Com efeito, constata-se que o Estado nacional deixou de ser o único promotor das condições de desenvolvimento, facilitadas mediante políticas de transferência de recursos das regiões mais ricas para as regiões mais pobres.

Na prática, quando uma das regiões do país sofria de maior índice de subdesenvolvimento relativamente às demais regiões, o Estado, através do seu planeamento, implementava políticas e medidas de correção com vista à compensação social dessas assimetrias.

Sucede, porém, que essas opções de política de desenvolvimento regional implicam que o Estado tivesse que assumir a responsabilidade de penalizar indicadores de competitividade das suas cidades e regiões mais desenvolvidas, onde residem os grupos sociais mais dinâmicos e modernizados da sociedade, de modo a que assim protegessem e compensassem aquelas regiões mais pobres, que não se conseguiram ajustar à sociedade da informação.

Contudo, para que o Estado assumisse essa responsabilidade desenvolvimentista e de correção das assimetrias regionais e evitasse a dualização da economia, com uns grupos sociais a ficarem pelo caminho e outros a obterem sucesso na hierarquia social, os responsáveis políticos tinham que resolver uma contradição: 

1)    por um lado, atender à satisfação de necessidades legítimas dos grupos sociais mais dinâmicos da sociedade, que têm uma capacidade competitiva, estão abertos ao risco e criam riqueza;

2)    por outro, saber em que medida o apoio do Estado deve ser dirigido para aqueles grupos sociais menos dinâmicos da sociedade, que não têm uma vocação competitiva e não contribuem para a modernização da sociedade e da economia.
Este tipo de opções protecionistas tomadas pelos agentes do poder, que querem sempre ser reeleitos para mais um mandato, tem como vantagem recolher o apoio eleitoral das multidões desprotegidas, que compensam os agentes políticos que socialmente os protegeram, ainda que à custa de oportunidades de modernização.

Se, ao invés, os agentes do Estado decidirem proteger os setores mais dinâmicos e competitivos da sociedade, com sentido de risco e de empreendedorismo, o Estado estará, por um lado, a reforçar as condições de modernização e desenvolvimento, mas, por outro lado, essa aposta comportará um risco de maior instabilidade social, reforçando a dualidade social nesse espaço nacional, agravando o desnível das condições de vida entre os grupos sociais mais ricos e os mais pobres da população. São esses grupos que, frustrados nas suas expetativas sociais, tendem a transferir a sua base de apoio social para as oposições.

Ou seja, o contexto de globalização competitiva impõe aos decisores políticos do Estado nacional o seguinte dilema: ou promovem a competição e o risco na economia, ou apostam na proteção social.  

A escolha dos responsáveis políticos por uma ou outra opção não é simples e, mesmo quando uma das prioridades é assumida publicamente, não há garantias de que essa aposta estratégica seja consistente.

A fragmentação dos territórios do Estado (weberiano) em espaços competitivos e em espaços de proteção social, consoante a decisão que o poder político em exercício tomar, implica, necessariamente, um espartilho do próprio sentido de unidade nacional, que, no quadro do processo constitutivo do poder e de consolidação do Estado nacional, tinha sido uma variável crucial na estabilidade social interna, apesar da afirmação do nacionalismo das nações, em inúmeras circunstâncias, ter originado guerras civis e conflitos internacionais.

 

 
6. Vulnerabilidade da Europa em contexto de globalização competitiva. A política e o cinismo.


Nestas condições, e no quadro da União Europeia (UE) em que estamos inseridos, importa notar que estas contradições não são resolúveis mediante argumentos de autoridade, posto que o Estado nacional já não consegue garantir qual vai ser a trajetória de modernização e desenvolvimento de cada unidade política no seu espaço interno, nem no seio do grande espaço da UE.

Mas o que é curioso notar na atual estrutura de decisão comunitária, e em concreto no diretório franco-alemão que vingou durante os últimos anos, até à chegada ao poder em França de François Hollande a 15 de maio de 2012, em que esse diretório (mantido por Sarkosy e Merkel) teoricamente implodiu, é que a Europa não tem sido bem sucedida ao procurar garantir o equilíbrio do conjunto dos interesses dos Estados membros, porque a sua interrelação ou as oscilações dos seus interesses e expetativas conjuntas os transformam e alteram em relação às suas posições iniciais. Dum projeto solidarista passou-se a um projeto egoísta.

Ora, para que uma estrutura política sui generis e complexa funcione, como é a União Europeia, e que transcende a clássica confederação de Estados mas que também não é uma federação política perfeita à norte-americana, é necessário que as trajetórias individuais de cada Estado membro, ainda que inscritas em grupos e núcleos de interesse estratégico específicos em razão da sua grandeza, sejam flexíveis, adaptando-se com rapidez à alteração do padrão e hierarquia de poder das relações internacionais vigentes.

Sucede que o ajustamento a esse novo padrão de poder, que dita a norma competitiva a seguir pelo sistema internacional e que corresponde ao que designamos globalização competitiva (GC), é, precisamente, desigual entre as nações, circunstância geradora de fricções e de conflitos, na medida em que os grupos sociais alemães têm, seguramente, ritmos de modernização e desenvolvimento muito diferenciados dos ritmos grego, português ou espanhol.  

Essa diferenciação gera, necessariamente, diferentes ritmos de adaptação à mudança por parte dos grupos sociais que integram as sociedades dos Estados membros da UE.

Mais do que sociedades dualizadas no espaço europeu, em que uns são ricos, rápidos e incluídos na sociedade e outros dela são marginalizados e excluídos, a Europa conta, doravante, com outro constrangimento, outra dualização: os Estados mais ricos procuram o risco, a competição, a dominação e a capitalização; enquanto que os países menos desenvolvidos, ou intervencionados pelas instituições europeias, definem os seus interesses numa perspetiva de segurança, de continuidade e de estabilidade, a fim de assegurarem a proteção dos equilíbrios sociais segundo a lógica distributivista do Welfare state.

É deste ponto de inflexão entre estes dois grupos de países com interesses e ritmos de crescimento diferenciados no seio da UE que nasce a mudança de paradigma que reconhece ao Estado nacional a perda de eficácia dos dispositivos de crescimento rápido e continuado das suas economias, de que dependem os programas de modernização duma nação.  

Esse desiderato de crescimento constante deixou de ser possível, até pela alteração do padrão demográfico, com as pessoas a viverem mais tempo[18], e a passagem duma sociedade de capitalização para uma sociedade de progressivo endividamento (privado e público), justificado pela incapacidade de viabilidade e de sustentabilidade daqueles sistemas sociais que foram garantidos durante a segunda metade do séc. XX pelo Welfare state[19].

Este anacronismo veio demonstrar que os responsáveis políticos que procuram ser apoiados e eleitos com base em propostas políticas que nem sempre cumprem culmina na chamada “mentira política institucionalizada”, na medida em que os agentes políticos recorrem às “contabilidades criativas” dos respetivos programas eleitorais para mascarar as estatísticas e os índices de desenvolvimento dos países, acabando, mais tarde ou cedo, por ser desmascarados pelas opiniões públicas (e publicadas).  

Lamentavelmente, esse trabalho de desocultação pela verdade só ocorre ao fim de anos, de décadas de desenvolvimento perdido ou adiado e com manifesto sacrifício das populações que viram os seus projetos de vida pessoais, familiares e empresariais destruídos pela incompetência, corrupção, má gestão e incúria daqueles que, supostamente, tinham a obrigação de zelar pelo bem comum de que falava Aristóteles[20].

Com efeito, este alerta, que configura um jogo de espelhos e encerra a enorme perversidade da política, é uma extensão natural da mentira política, que representa, em rigor, uma reinterpretação interessada dos factos, mas que acaba por ter uma vantagem para as opiniões públicas e os eleitorados, que consiste em aguçar a sua atenção para dois aspetos cruciais da política contemporânea:

1) as promessas feitas pelos agentes políticos em contextos eleitorais;
 

2) e a monitorização daquelas promessas pelos eleitorados sobre os legítimos titulares de cargos políticos [21].  

Todavia, não podemos esquecer que a qualidade das instituições e da definição das políticas públicas, mormente no contexto competitivo da União Europeia da qual dependemos, e em cujo regime de “protetorado de tipo neocolonial” hoje nos encontramos por força da vigência do memorando da Troika, depende, em larga medida, da visão, da experiência e da qualidade das elites europeias que têm as “chaves” do poder na Europa.

Como esses resultados não são animadores, ao nível das ideias e dos projetos comunitários das elites políticas europeias e dos resultados práticos esperados em cada um dos Estados-membros, quando se faz um paralelo entre o legado dos fundadores da Europa (após a Segunda Guerra Mundial) e os resultados atuais, o contraste não podia ser mais frustrante.

Tomando, naturalmente, por referência os fundadores e os líderes da Europa no pós Segunda Guerra Mundial. A saber: Robert Schuman e Jean Monnet, K. Adenauer, Churchil (de forma sui generis), Sicco Mansholt, Paul Henri Spaak, Alcide De Gasperi, Altiero Spinelli, mais recentemente, na Alemanha, Helmut Schmitd e Kohl, e, em França, Miterrand e Jacques Delors, só para citar os mais influentes. Tudo nomes que contrastam com os atuais personagens e burocratas que dirigem os destinos da UE.

Todos eles, duma forma ou doutra, preconizaram a criação dos “Estados Unidos da Europa” e uma integração de políticas acelerada, especialmente após 1945 (e nas décadas seguintes), porquanto acreditavam que só uma Europa unida e partilhando de ideais, de valores e de desígnios comuns poderia garantir a paz no Velho Continente. Em rigor, o seu objetivo era erradicar definitivamente as “doenças” europeias patentes no nacionalismo e no belicismo que atravessou o séc. XX.

Por último, importa reter neste ponto a atenção que os cidadãos/eleitores/contribuintes passaram a dedicar àquilo que são os interesses e as informações encobertas pela crónica indeterminação dos comportamentos dos agentes políticos.

 
Aliás, Peter Sloterdijk, filósofo germânico, foi talvez quem mais eficientemente reformulou a questão do cinismo político na modernidade. Fê-lo através da sua Crítica da razão cínica ao estabelecer as condições do cinismo dos agentes políticos, pois quem exerce o poder e conhece as suas ilusões e consequências não o pode (ou deve) fazer fingindo que desconhece tais condições no exercício do poder, com o fito de ocultar a sua verdadeira perversão.  

Uma relação disfarçada numa imagem de ingenuidade, inocência e compaixão, qualidades que facilitam a relação psicológica dos governantes com os governados, crucial na fase de captação de votos racionalizada pelo sistema de promessas eleitorais[22].

É essa opacidade voluntária e deliberada por parte dos responsáveis políticos que distorce os mecanismos de regulação do poder democrático. O resultado dessa deliberada perversão é impedir uma avaliação objetiva dos governantes por parte dos eleitores e, ao mesmo tempo, induzir nos eleitorados a perceção de que as suas escolhas eleitorais são indiferentes, porque os resultados práticos são invariavelmente os mesmos.  

No próximo programa de análise, procuramos compreender por que razão os mecanismos decisórios das atuais democracias representativas privilegiam os personagens em detrimento dos protagonistas políticos, cujas referências aos fundadores da Europa ilustrámos acima.

 


7. Personagens e protagonistas perante a modernização, a crise e a globalização


Do exposto ficou claro que o que torna as questões políticas trilemáticas (em contexto de GC), muito diversas do que eram as questões dilemáticas clássicas que se colocavam aos Estados nacionais em sistemas delimitados por fronteiras territoriais e subordinados a uma contraposição bipolar (entre ricos vs pobres, dominantes vs dominados, nacionalistas vs cosmopolitas) ou ainda no plano das orientações políticas (conservadores vs progressistas, modernizadores vs tradicionalistas, esquerda vs direita), converge com o mesmo processo que conduz à alteração dos poderes políticos nacionais[23].

Entre os atributos nucleares do poder do Estado nacional, inscreve-se não só o controlo do território pelo exercício da soberania, o domínio do espaço, mas também o controlo sobre essa variável crucial que é o tempo, variável que marca o ritmo da mudança. 

Esse ritmo da mudança, marcado pelas reformas previstas nos programas políticos comunicados à sociedade, insere-se na ordem do político e do estratégico, que regula a coordenação dos processos de mudança, das correntes de inovação e o sistema de relações entre os atores na esfera da globalidade.

Significa que esta lógica de domínio sobre os ritmos dos processos de mudança na vida das nações já não depende de decisões tomadas dentro dos territórios, eles decorrem do que for a coevolução das dinâmicas das outras sociedades e dos outros núcleos estratégicos de decisão, posto que é desses outros fatores que irá depender a estruturação e a intensidade, velocidade e impacto, para retomar a terminologia de Held e McGrew, das novas correntes e movimentos de mudança que interferem com a vida das nações.

Quando o Estado nacional deixa de poder controlar essa dinâmica social interna perante a pressão das correntes de inovação originadas no exterior, e que são forças globais que o Estado não consegue regular, deixa de ser possível controlar o tempo histórico da mudança e, com isso, os equilíbrios internos também passam a ficar dependentes do risco e da incerteza resultantes das forças e das pressões externas.

Nessa interação de forças, de processos e de relações, é improvável que os sistemas políticos se interrelacionem de tal modo com vista a corrigirem esses diferentes ritmos de mudança automaticamente. Pois, cada país, em função das suas capacidades económicas e sociais, reage de modo diverso aos choques de modernização impostos pela GC. Tais choques geram, nuns casos, trajetórias de desenvolvimento e expansão, noutros casos, trajetórias de estagnação e recessão na vida das nações.

Neste contexto, verifica-se que, nas sociedades europeias atuais, o campo eleitoral está condicionado por uma relação perversa entre eleitores e candidatos ao poder, que impede que os mecanismos de seleção democráticos assegurem uma seleção mais eficaz dos melhores governantes.

O resultado dessa perversão assenta na atribuição do prémio àqueles que conseguem estruturar a opinião pública em função de critérios de popularidade, em prejuízo daqueles que estruturam a opinião em função de critérios de responsabilidade.  

Aqueles prometem aquilo que sabem não poder cumprir (populistas); estes prometem apenas aquilo que sabem poder realizar (responsáveis).

Nesta espiral de processos no interior dos espaços nacionais, a modernização duma economia vai acentuar as desigualdades em função dos critérios de competitividade/atratividade.

Mais uma vez, o valor estratégico de um Estado nacional, perante o sistema internacional globalizado, é identificado mediante um raciocínio tão simples quanto inevitável, que consiste em contrapor os dois padrões em conflito: 

1) o padrão estrutural onde foram instalados os velhos mecanismos de segurança e de distribuição da economia keynesiana;


2) e o padrão de modernização competitiva em condições de mobilidade (legado schumperiano da destruição criadora), que há muito deixou de estar vinculado a um território nacional.

Diante deste conflito de modelos de análise e de realidades distintas, a passagem para contextos de sociedades abertas à globalização, em ambientes tecnológicos que asseguram um elevado nível de mobilidade, vem inviabilizar a configuração política anterior do Estado nacional delimitado pelos territórios, porquanto lhe vai retirar a capacidade para sustentar os equilíbrios sociais internos.

Contudo, isto não responde ao destino do Estado nacional. Presumindo que ele não desaparece por força da globalização, urge perceber em que configuração política se transforma.

É o objetivo do nosso último programa de análise.

 

8. O Estado-rede: a configuração política emergente
 

O globalismo, enquanto configuração histórico-social abrangente no seio da qual se movem pessoas e coletividades, nações e nacionalidades com as suas formas de vida e trabalho, com as suas instituições e valores, não implica a morte do Estado nacional, mas pressupõe uma evolução decorrente da adaptação do Estado à GC.

Daí a formulação da seguinte interrogação:  

E se o Estado-rede, essa nova configuração política, que cresce e se desenvolve com o globalismo, não for, de facto, uma utopia da era da sociedade informação?[24]

Verificámos que o vetor competitividade passa a ser independente, estruturado em contexto de mobilidade e operando em espaços sem delimitação do Estado nacional, revelando que a lógica das relações políticas internas deixou de ser suficientemente autónoma, porquanto deixou de estar protegida pela membrana da soberania. 

Neste sentido, a configuração política emergente deverá ser reconhecida como um produtor de racionalidade com potencial de adaptabilidade, ou seja, capacidade de ajustamento ao processo de mudança das condições estratégicas na economia e na sociedade. A ser assim, trata-se duma configuração estratégica que envolve o conjunto da sociedade, e não só o Estado.

Sendo certo que onde não houver atratividade, não haverá apenas carências de capitais, também se registará um afastamento das principais tendências de inovação tecnológica, o que implica a perda de oportunidades de modernização na sociedade.  

À luz destes encadeamentos, mais importante do que declarar a fatalidade da morte do Estado nacional e mais útil do que prosseguir a utopia de buscar um governo universal junto do qual se possa transferir uma responsabilidade que não se consegue fixar com precisão, será útil perspetivar os dispositivos de avaliação das trajetórias de desenvolvimento e das correntes de modernização, com base nos quais se poderá aferir se uma dada sociedade caminha em direção ao desenvolvimento sustentado ou em direção ao abismo.

Naquele caso, como vimos acima, o Estado privilegia o risco, o empreendedorismo e a competitividade, neste caso protegem-se as multidões de vítimas.

Todavia, a história do Estado e da teoria política que o procura racionalizar, desde Maquiavel (1517), no dealbar da Idade Moderna, é o reflexo da violência e da coação. Na tradição aristotélica, o Estado definia-se como um conjunto de objetivos racionais da associação humana e, mais tarde, na perspetiva do idealismo alemão, influenciado pela racionalidade técnica do início do séc. XX, o Estado sublinha a importância crescente da burocracia, que foi o contributo maior dado por Max Weber, na sua obra Economia e Sociedade, em 1921. 

Em qualquer uma destas perspetivas da teoria política, houve a preocupação de correlacionar o Estado à racionalidade, sem a qual o exercício do poder e da aplicação do conhecimento e da autoridade não faziam sentido.

Foi essa interdependência crescente entre o Estado, a racionalidade técnica e as práticas transnacionais que passou a qualificar o Estado como um novo ator, agora mais adaptado à GC e ajustado às práticas que o envolve na esfera da globalidade.

Auxiliado por Albrow, explicitamos essa nova categoria que transcrevemos no original:

Whether in law, or in collaborative transnacional practices, or in the new social technology, the rationality of the state reveals what was always its potencial, namely its objective and universalizable quality distinct from any particular nationhood. Even as the nation-state developed, state pratices transcended the boundaries which Hegel erect around it. The state´s roots are no longer in the nation; its extent is worldwide. It does not belong to a particular set of people at a particular time, though it may have arisen from their needs. The state in Global Age has been uprooted. Governments find that the deracinated state they administer does not belong to themselves, or even to their own people. The origin of its rules are multilocal, polycentrically administered. From that point of view it is now possible to think of the state as a worldwide web of practices, with no one centre. (…) The state has become a globally extended sphere of meaningful activities. Multiple agencies engage constantly in defining the nature and limits of their respective jurisdictions. (…) The state withdraws into a realm of techonology, law and transnational organization. But in a world where individual activities have so long been energized by the aspirations of the nation-sate, where the state has colonized so much of daily life, where social life has been framed and regulated by state, the consequences of its transformation for individuals and groups are profound[25].


Do exposto resulta que, perante o fator de ineficiência da configuração tradicional das sociedades europeias, a competitividade já não pode ser alimentada pelo protecionismo do Estado e a configuração do poder já não pode ser determinada só pelos interesses internos, sem relevar a evolução da GC, que obriga as sociedades modernas a adaptarem-se a uma nova realidade, à formação de sociedades múltiplas, com referenciais de identidade complexos.  

Nessa evolução, a globalização é o conceito que assume uma posição-chave no léxico das CSH. A circulação desses saberes permite ao conhecimento reflexivo ser aplicado às condições de reprodução do sistema e, simultaneamente, alterar intrinsecamente as circunstâncias a que originalmente se reportava.

O objetivo é duplo: diminuir o risco e potenciar a confiança no mundo social contemporâneo.  

BIBLIOGRAFIA

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[1] Anthony Giddens, The Consequences of Modernity, Cambridge, Polity, 1990.
[2] As novas questões colocadas aos processos de avaliação das empresas utilizadas pelos mercados, quando se verifica o recurso a práticas fraudulentas, com o fito de mascarar as estatísticas oficiais, já se estendeu aos Estados. Este problema agrava o paradoxo das sociedades da informação (SI) que, por um lado, reclamam mais transparência, por outro, revelam um défice de informação, gerando uma opacidade que cria uma indeterminação nos mercados financeiros e nos comportamentos eleitorais.
[3] Jan A.Scholte, Globalization – a critical introduction -, Palgrave, N.Y., 2000.
[4] David Held, Anthony McGrew, D. Goldblatt & J. Perraton, Global Transformations – Politics, Economics and Cultures, Polity Press, Cambridge, 1999.
[5] Oliver Reiser, Planetary Democracy: An Introduction to Scientific Humanism and Applied Semantics, N.Y., Creative Age Press, 1944.
[6] D. Held e A. McGrew, Global Transformations, ob. cit. pág. 16.
[7] Joaquim Aguiar, Fim das Ilusões, Ilusões do Fim, 1985-2005, Aletheia Editores, Lisboa, 2005.
[8] Paul Hirst e Grahame Thompson, Globalization in Question, London, Polity Press, 1995.
[9] Para uma visão abrangente da História da Europa, ver as obras: Jean B. Duroselle, A Europa de 1815 aos nossos dias (Vida Política e Relações Internacionais), S. P., Pioneira, 1985; Histoire Diplomatique de 1919 à nos Jours, Dalloz, 1985; Todo o Império Perecerá, Ed. Unb, 2001; Pierre Renouvin e J.B.Duroselle, Introdução à História das Relações Internacionais, Difusão Europeia do Livro, S.P., 1967; James Joll, A Europa desde 1870, Pub. D. Quixote, Lx, 1982.
[10] Raymond Aron, Paix et Guerre entre les nations, Calmann-Lévy, Paris, 1962.
[11] Com a primeira globalização, desencadeada pela expansão europeia, o fator tecnológico primacial foi o domínio da circulação, em termos de ciência da navegação e no plano da construção de meios de transportes eficazes. Foi este domínio sobre a circulação, mais do que a superioridade militar, que permitiu aos europeus estabelecer a ligação entre o ouro e a prata das Américas e os produtos do Oriente, partindo da relação comercial para fixar relações de dominação duradouras.
[12] C. Bright e M. Geyer, “For a unified history of the world in the twentieth century”. Radical History Review, N.Y., nº 39, 1987, pp. 69-91.
[13] Ao tempo da Idade Média, o Estado era personificado pelos senhores feudais.
[14] Para efeitos operacionais, definimos aqui Estados com vocação “globalizante” aqueles que conseguem impor a terceiros os padrões e os ritmos de modernização e desenvolvimento; por oposição aos Estados “globalizados”, que são todos aqueles que são condicionados a seguir o padrão de modernização imposto pelos Estados de tipo globalizante. Uns são os líderes, os outros são os seguidores.
[15] Cfr., inter alia, Viviane Forrester, Une Étrange Dictature, Librairie Arthéme Fayard, Paris, 2000; Joseph Stiglitz, Globalização, a grande desilusão, Lisboa, Terramar, 2002. Stiglitz defendeu que o mercado neoliberal fundamentalista foi sempre uma doutrina política ao serviço de interesses. Nunca recebeu o apoio da teoria económica.
[16] V. Forrester, L´Horreur Économique, Paris, Fayard, 1996, (trad. Terramar), pág. 11.
[17] Manuel Castells, The Rise of the Network Society, Oxford, Blackwell, vol. I, 1996. Um trabalho acerca da dinâmica económica e social na nova idade da informação. Baseado na investigação nos EUA, Europa, América Latina, cujo objetivo foi formular uma teoria da sociedade da informação do mundo contemporâneo.
[18] Pierre Rosanvallon, A Crise do Estado Providência, Lisboa, Editorial Inquérito, 1984.
[19] Na base desse modelo de organização do Estado social, em boa parte originado no legado keynesiano, estão duas ideias que surgiram como resposta às difíceis condições de vida do século XX: 1) o bom funcionamento do mercado, idealizado pelo “pai” da Economia, Adam Smith (desmentido pelos tempos); 2) e pela defesa dos direitos dos cidadãos nas esferas da saúde, da educação e da alimentação. Cfr., P. Rosanvallon, ob. cit.
[20] Aristotle, The Politics, tr. Ernest Barker, Oxford, Clarendom Press, 1946.
[21] O problema da mentira política, como notou o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, é que coloca a liberdade do outro entre parênteses. Cfr., J. P.Sartre, Cahiers pour une morale (obra póstuma), Éditions Gallimard, 1983, pág. 204.
[22] Peter Sloterdijk, Critique de la Raison Cynique, Paris, C. Bourgois, 1987.
[23] Cfr., inter alia, Zigmunt Bauman, Globalization: The Human Consequences, N.Y., Columbia University Press, 1998; e, do mesmo autor, Intimations of Postmodernity, London, Routledge, 1992.
[24] Rui Matos, Globalização: a crise do Estado soberano? (tese de doutoramento em Ciência Política), Lisboa, UTL-ISCSP, 2003, polic., vol. II, pág. 396. Ver o Capit. 8 (Parte V) O Estado Globalizado na Era da Informação: O Estado-rede, págs. 386-701.
[25] Martin Albrow, The Global Age, State and Society Beyond Modernity, Cambridge, Polity Press, 1996, pág., 64.

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