sexta-feira

Helmut Schmidt: Lição à Alemanha

Helmut Schmidt: Lição à Alemanha



É uma lição de história da Europa e uma lição de política, como só o conhecimento directo e íntimo do último meio século da história da Europa e da Alemanha, como só uma vivência de quase um século permite. Helmut Schmidt, do alto dos seus 93 anos e senhor de uma memória e de lucidez raríssimas, explicou aos alemães e aos europeus a origem das coisas, o que delas necessariamente decorre, os limites e os riscos para a Alemanha e para a Europa, num grande discurso, sem rodriguinhos, narizes de cera e nem a linguagem oca do ‘politicamente correcto’. Ao lê-lo, até parece que o velho sábio Schmidt está a explicar a “origem do mundo” a uma pobre e ignara parente, chegada há pouco do frio de um campo onde o conhecimento do mundo real não penetrava e as cabeças eram formatadas com os métodos do “1984”… Resta saber se Merkel terá conseguido entender alguma coisa. E, sejamos claros, o risco da lição ter chegado tarde é enorme. O informado, lúcido e muito reflectido realismo de Schmidt é de leitura imprescindível. in Inteligência Económica


Queridos Amigos, minhas Senhoras e meus Senhores!
Deixai-me começar com uma nota pessoal.
Quando o Sigmar Gabriel, o Frank-Walter Steinmeier e o meu Partido me pediram mais uma vez uma contribuição, gostei de recordar como há 65 anos eu e a Locki, de joelhos no chão, pintavamos cartazes para o SPD em Hamburgo-Neugraben.
Na verdade tenho de confessar desde já: no que diz respeito a toda a política partidária, já estou para além do Bem e do Mal, por causa da minha idade.
Há muito que para mim, em primeiro e em segundo lugar, se encontram as tarefas e papel da nossa nação no indispensável âmbito União Europeia.
Simultaneamente estou satisfeito por poder partilhar esta tribuna como o nosso vizinho norueguês Jens Stoltenberg, que no centro de uma profunda infelicidade da sua nação, nos deu a nós e a todos os europeus um exemplo a seguir de direção liberal e democrática de um estado de direito.
Enquanto homem já muito velho, penso naturalmente em longos períodos temporais – quer para trás na História, quer para a frente na direção do desejado e pretendido futuro.
Contudo, não pude dar há alguns dias uma resposta clara a uma pergunta muito simples. Wolfgang Thierse perguntara-me: “Quando será a Alemanha, finalmente, um país normal?”
E eu respondi: num futuro próximo a Alemanha não será um país “normal”. Já que contra isso está a nossa carga histórica enorme mas única. E além disso está contra isso a nossa posição central preponderante, demográfica e economicamente, no centro do nosso continente bastante pequeno mas organizado em múltiplos estados-nação.
Com isto já estou no centro do complexo tema do meu discurso: a Alemanha na Europa, com a Europa e pela Europa.
Razões e origens da integração europeia
Apesar de em alguns poucos dos cerca de 40 Estados europeus a consciência de ser um nação se ter desenvolvido tardiamente – assim em Itália, na Grécia e na Alemanha – sempre houve em todo o lado guerras sangrentas.
Pode-se compreender esta história europeia – observada da Europa Central – pura sequência de lutas entre a periferia e o centro e vice-versa. Sempre de novo o centro se manteve o campo de batalha decisivo.
Quando os governantes, os estados ou os povos no centro da Europa foram fracos, então os vizinhos da periferia avançaram para o centro.
A maior destruição e as relativamente elevadas baixas humanas aconteceram na primeira guerra dos 30 anos entre 1618 e 1648, que se desenrolou fundamentalmente em solo alemão.
A Alemanha era, nessa época, simplesmente um conceito geográfico, definido de forma desfocada só pelo espaço da língua alemã.
Mais tarde vieram os franceses, sob Luís XIV e de novo sob Napoleão. Os suecos não vieram uma segunda vez; mas sim diversas vezes, os ingleses e os russos, a última vez com Stáline.
Mas quando as dinastias ou os Estados eram fortes no centro da Europa – ou quando se sentiam fortes! – então atacaram a periferia.
Isto já é válido para as cruzadas, que foram simultaneamente cruzadas de conquista não só na direção da Ásia Menor e Jerusalém, mas também na direção da Prússia Oriental e na de todos os três estados bálticos atuais.
Na idade moderna, é válido para as guerras contra Napoleão e é válido para as três guerras de Bismarck em 1864, 1866 e 1870/71.
O mesmo é válido principalmente para a segunda guerra dos 30 anos de 1914 a 1945. É especialmente válido para os avanços de Hitler até ao Cabo Norte, até ao Cáucaso, até à ilha grega de Creta, até ao sul da França e até mesmo a Tobruk, perto da fronteira líbio-egípcia.
A catástrofe europeia, provocada pela Alemanha, incluiu a catástrofe dos judeus europeus e a catástrofe do estado nacional alemão.
Mas antes os polacos, as nações bálticas, os checos, os eslovacos, os austríacos, os húngaros, os eslovenos, os croatas tinham partilhado o destino dos alemães na medida em que todos eles, desde há séculos, tinham sofrido sob a sua posição geopolítica central neste pequeno continente europeu.
Dito de outra forma: diversas vezes, nós, alemães, fizemos sofrer os outros sob a nossa posição central de poder.
Hoje em dia, as reivindicações territoriais conflituais, os conflitos linguísticos e fronteiriços, que ainda na primeira metade do século XX desempenharam um papel importante na consciência das nações, tornaram-se, de facto, insignificantes, pelo menos para nós alemães.
Enquanto na opinião pública e na opinião publicada nas nações europeias o conhecimento e a lembrança das guerras da Idade Média se encontram amplamente esquecidos, a lembrança de ambas as guerras do século XX e a ocupação alemã desempenham todavia ainda um papel latente dominante.
Penso ser para nós alemães decisivo que quase todos os nossos vizinhos – e para além disso quase todos os judeus no mundo inteiro – se recordem do holocausto e das infâmias que aconteceram durante a ocupação alemã nos países da periferia.
Não está suficientemente claro para nós alemães que provavelmente entre quase todos os nossos vizinhos, ainda por muitas gerações, se mantém uma desconfiança contra os alemães.
Também as gerações alemãs posteriores têm de viver com este peso histórico. E as atuais não devem esquecer: foi a desconfiança com um futuro desenvolvimento da Alemanha que justificou o início da integração europeia em 1950.
Em 1946, Churchill, no seu grande discurso em Zurique, tinha duas razões para apelar aos franceses para se entenderem com os alemães e construírem com ele os Estados Unidos da Europa: em primeiro lugar a defesa conjunta perante a União Soviética, que parecia ameaçadora, mas em segundo a integração da Alemanha numa aliança ocidental alargada.
Porque, perspicazmente, Churchill previa a recuperação económica da Alemanha.
Quando em 1950, quatro anos depois do discurso de Churchill, Robert Schuman e Jean Monnet apresentaram o plano Schuman para a integração da indústria pesada europeia, a razão foi a mesma, a razão da integração alemã.
Charles de Gaulle, que dez anos mais tarde propôs a Konrad Adenauer a reconciliação, agiu pelo mesmo motivo.
Tudo isto aconteceu na perspetiva realista de um possível desenvolvimento futuro do poder alemão. Não foi o idealismo de Victor Hugo, que em 1849 apelou à união da Europa, nem nenhum idealismo que esteve em 1950/52 no início da integração europeia então limitada à Europa Ocidental.
Os estadistas dessa época na Europa e na América (nomeio George Marshall, Eisenhower, também Kennedy, mas principalmente Churchill, Jean Monnet, Adenauer e de Gaulle ou também Gasperi e Henri Spaak) não agiram de forma nenhuma por idealismo europeu, mas sim a partir do conhecimento da história europeia até à data.
Agiram no juízo realista da necessidade de impedir uma continuação da luta entre a periferia e o centro alemão.
Quem ainda não entendeu este motivo original da integração europeia, de que continua a ser um elemento fundamental, quem ainda não entendeu isto falta-lhe a condição indispensável para solucionar a presente crise altamente precária da Europa.
Quanto mais, durante os anos 60, 70 e 80, a então República Federal ganhava em peso económico, militar e político, mais a integração europeia se tornava aos olhos dos governantes europeus o seguro contra a de novo possível tentação de poder alemã.
A resistência inicial de Margaret Tatcher ou de Mitterrand ou de Andreotti em 1989/90 contra a unificação dos dois estados alemães do pós-guerra estava claramente fundada na preocupação de uma Alemanha poderosa no centro deste pequeno continente europeu.
Gostaria aqui de fazer um pequeno excurso pessoal. Ouvi Jean Monnet quando participei no seu comité «Pour les États-Unis d’Europe». Foi em 1955. 
Para mim, Jean Monnet é um dos franceses mais perspicazes que eu conheci na minha vida em questões de integração, também por causa do seu conceito de avançar passo a passo na integração europeia.
Desde aí que, por compreender o interesse estratégico da nação alemã, me tornei e me mantive um partidário da integração europeia, um partidário da integração da Alemanha, não por idealismo.
Isto levou-me a uma controvérsia com Kurt Schumacher, o por mim muito respeitado presidente do meu partido, para ele insignificante, para mim com 30 anos, regressado da guerra, muito séria.
Levou-me a concordar, nos anos 50, com os planos do então Ministro dos Negócios Estrangeiros polaco Rapacki.
No início dos anos 60 escrevi então um livro contra a estratégia oficial ocidental da retaliação nuclear, com que a NATO, na qual ontem como hoje nos encontrávamos integrados, ameaçava a poderosa União Soviética.[...]
© SPD 2011
Obs: É interessante recuperar as velhas narrativas do pós II-Guerra Mundial, seguida da reconstrução da Europa (Plano Marshal) articulada com o desafio da década de 50 do séc.XX (Tratado de Roma): a fundação da Europa comunitária - que não é uma federação nem uma simples confederação, mas um tercium genius que, hoje, enfrenta desafios mais complexos e também um maior número de países a exigir a coordenação de políticas sectoriais no quadro da harmonização comunitária, e em que há sempre duas ou três velocidades no ritmo de desenvolvimento dos 27 países que actualmente integram a União Europeia. Foi uma geração de luxo nessa arte e techné de pensar e de executar as grandes políticas nacionais e europeias dos últimos 35 anos. Vale a pena evocá-los, nem que seja para evidenciar o contraste intelectual e a densidade política com os actuais contabilistas que gerem o dia-a-dia da Europa, como se esta fosse uma retrosaria de bairro em situação de pré-falência. 

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