sexta-feira

Governar por compaixão: uma novel técnica do poder, uma nova categoria sociológica




Doravante, o poder em funções descobriu uma nova técnica de governação: governar por compaixão, o que se traduzirá, seguramente, num processo de profunda humanização (ou cristianização) do poder, chegando mesmo todo o elenco governativo ao auto-sacrifício quando os segmentos da população mais desfavorecidas atingem graus insuportáveis de pobreza. É aí que entra a compaixão do poder, que desce as escadarias do poderio que ocupa e apresenta-se junto dos pobres, pedintes e deserdados da vida, num exercício de pura compaixão que até poderia ter sido inspirado no imenso legado de Madre Teresa de Calcutá, uma das mulheres mais sábias e influentes de todo o séc. XX, a par do saudoso Papa João Paulo II, de quem era amiga pessoal e o representava inúmeras vezes em missões de caridade pelo mundo.

Desta feita, quando o poder diz o que sente, e se o que sente é genuíno e sincero, então o poder passará a governar duma forma verdadeiramente altruísta, de modo a ajudar os outros a atingir a felicidade, a ter algum dinheiro para viver e a desenvolver toda uma cultura de comportamento - individual e colectivo - pautado pelo amor ao próximo, inspirado na verdadeira compaixão, afinando sentimentos gentis e amáveis entre a comunidade, fazendo de cada vizinho um membro da família, e da cada estranho um futuro amigo com quem se passará a contar para tudo na vida. 

Neste quadro de compaixão, devemos reconhecer que o poder em funções revolucionou as noções existentes do poder, dado que converteu a sua natureza política, assente na força e na lex, num pilar mais humanizado alicerçado no valor absoluto do amor ao próximo. Até porque, recorrendo aos conhecimentos da medicina moderna, os homens com compaixão, os altruístas interessados pelos outros, são, por regra, mais saudáveis quando comparados com homens de índole egoísta, virados para si e para os seus interesses, acarretando nestes uma maior possibilidade de serem portadores de mais doenças.

Temos, pois, que crer nesta versão benigna do poder que demandou as chaves da decisão pública em Portugal em plena recessão. 

O problema, contudo, reside quando compulsamos estes desejos, este quadro de intenções com a realidade, estes sistemas de ideias com as estruturas de acção. É aí que nos deparamos com um fosso intransponível em que "a bota não bate com a perdigota". E compreendemos, ministério a ministério, política pública a política pública, das finanças à economia passando pela agricultura e saúde, que as intenções não se ajustam às realidades alinhadas pelos discursos do poder. 

Quando isso se verifica entramos num patamar que designamos de mentira em política, que são sempre reinterpretações interessadas da realidade. É também nesses momentos que compreendemos a fundo em que consiste a proclamada compaixão, que não passa, em rigor, do medo que se tem da fúria das massas em poder sair à rua e fazer uma revolução. 

Como prevenção dessa possibilidade, e porque ao exercício do mando está sempre associado o medo (uma variável explicitada em toda a obra de T. Hobbes, por ex.), o poder utiliza o discurso para atenuar essa eventualidade e ir, paulatinamente, comprando os silêncios, amansando as feras, limando arestas e aplacando tensões sociais em gestação. 

Hoje, em Portugal, governa-se assim: numa das mãos tem-se a cenoura, na outra o chicote fiscal, mas a novilíngua parece designar esta realidade superveniente de compaixão do poder. Recorta, de facto, uma novidade semântica que a ciência política deverá registar e estudar. 

E nós, o povo, como somos crentes e cultores da vida de Cristo na terra, acreditamos. 


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