Escolas de pensamento - por António Vitorino -
Sobre esta crise há duas escolas de pensamento. Uma que considera que, embora com uma profundidade sem precedente desde os anos 30 do século passado, esta crise será superada a prazo mais ou menos curto e as bases do futuro crescimento económico retomarão os elementos essenciais do período pré-crise.dn
Outra considera que, pelo contrário, a crise conjuntural veio acelerar factores de mutação estrutural que lhe preexistiam, sendo portanto a face visível de um novo paradigma que levará ainda algum tempo a cristalizar e a afirmar-se após o período de crise, em nome de um modelo de crescimento económico diverso.
Para os primeiros é necessário resistir e perdurar para reemergir.
Para os segundos, inovar e antecipar é condição para resistir e se reafirmar no futuro.
Ambas as escolas terão, assim, as suas razões e alguma parte da razão.
A leitura dos jornais é abundante em sinais que apontam ora num sentido ora noutro. O debate sobre a reforma do sistema financeiro americano tem sido o campo de afirmação mais cabal dessas duas escolas no plano dos actores políticos e dos analistas e comentadores económicos. Na Europa, infelizmente, não é tanto assim dado o manifesto atraso na definição das próprias regras da reforma…
Quem tem responsabilidades de Governo (ou quem a elas aspira num curto prazo) está, pois, confrontado com a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre a gestão das expectativas dos cidadãos e o rumo das reformas a empreender. No caso português, este desafio é mais complexo na medida em que ainda deve incorporar a pressão decorrente da crise da dívida (e não apenas da pública, mas também da privada) e as dificuldades de liquidez do sistema bancário, que pode ter um efeito de contaminação sobre a economia real e o crescimento económico de curto prazo.
Aqueles que antecipam um novo paradigma, por seu turno, têm consciência que a causa determinante desse "novo mundo" que vêem emergir resulta da globalização e da interdependência das economias à escala planetária, onde avulta o peso acrescido de alguns actores que até aqui não estavam no "círculo íntimo" dos decisores. As contradições e omissões da reunião do G20 realizada em Toronto provam que, por enquanto, ainda subsistem obstáculos para um acordo substantivo que prefigure as novas regras do jogo económico global com que vamos ter de viver.
Daqui decorre uma dificuldade que é comum às duas escolas sobre a crise. É que estes impasses tanto vulnerabilizam os que defendem que mediante meras reformas internas se poderá ir fazendo o caminho da saída da crise e de regresso ao modelo de crescimento económico anterior, como privam de pontos de aplicação aqueles que intuem uma nova relação de forças mundial no pós-crise.
As conclusões do G20 representam, para uns e para outros, um mero ganhar de tempo.
Com efeito, ninguém contesta que em vários domínios da vida económica global se exige uma regulação global, muito em especial no plano financeiro. Mas as prioridades e os mecanismos para lá chegar ainda constituem um factor de desacordo entre os países mais desenvolvidos e as economias emergentes, que não foi ultrapassado no Canadá. Em todas as reuniões do G20 se proclama a necessidade de evitar medidas proteccionistas, mas tais declarações mostram-se incapazes de superar os impasses nas negociações sobre o comércio mundial no âmbito da "ronda de Doha", que já conheceu várias datas de conclusão, todas falhadas.
O paradoxo é que, perante estes impasses, vão sendo adoptadas medidas sectoriais, regionais ou nacionais (como a reforma financeira nos EUA ou as anunciadas decisões unilaterais europeias em termos de taxação dos bancos e das transacções financeiras), ou vão proliferando os acordos comerciais bilaterais ou regionais em detrimento de um acordo global. Só que estas decisões, uma vez consolidadas pela pressão dos acontecimentos e pela necessidade de dar resposta às expectativas das opiniões públicas, acabam por tornar mais difícil a ulterior obtenção dos proclamados e desejados acordos globais…
A aparente vitória da primeira escola de pensamento acabará por tornar ainda mais evidente a razão que assiste à segunda. A questão é saber se não será tarde de mais…
Obs: Medite-se nestas duas escolas de pensamento, se possível entruzadas com aquilo que foi - também - o legado da Escola dos Annales de Marc Block e Lucien Febvre. Depois continuada por F. Braudel, Jacques Le Goff e Nora. Significa isto que a história das crises - modernas e contemporâneas - apesar de distintas, tem sempre o lado da conjuntura e da estrutura, e são esses dois tempos (médio e longo) que comprimem o nível das decisões que têm que se tomar, por vezes para o melhor, outras vezes nem tanto. Ora, Portugal, desde a fundação da sua nacionalidade, com Conde D. Henriques a bater na Mãe, D. Teresa, foi um projecto nacional que começou mal, desenvolveu-se de forma problemática mas, malgré tout, temos as fronteiras físicas mais estáveis da Europa. Em face disto tenho dificuldades em tipificar se o problema de Portugal é conjuntural, estrutural ou congénito... Ou se é toda uma cegueira colectiva que hoje nos tolhe não apenas o pensamento, mas também as energias, a motivação e as acções...
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