Grigory Perelman está cansado da matemática e dos matemáticos
Grigory Perelman numa fotografia sem data retirada da sua ficha pessoal no Instituto de Matemática de São Petersburgo AFP Público.
Grigory Perelman está cansado da matemática e dos matemáticos
Um génio matemático acaba de ser contemplado com um prémio de um milhão de dólares por ter resolvido um dos sete problemas mais difíceis da matemática, mas é provável que o recuse. Loucura? Aparentemente não. Pura desilusão com a matemática e os matemáticos. Afinal, não é a primeira vez que Perelman foge dos holofotes da fama a sete pés. Por Ana Gerschenfeld
Quando, há uns dias, um jornalista ligou para o telemóvel de Grigory Perelman a tentar fazer-lhe umas perguntas acerca do prémio que tinha acabado de lhe ser atribuído, o matemático russo de 43 anos respondeu-lhe simplesmente: "Pare de me incomodar, estou a apanhar cogumelos."
Visto pelo prisma das descrições que dele circulam há anos na imprensa e na Net - algumas vindas dos escassíssimos privilegiados que o entrevistaram pessoalmente, mas a maioria baseada em conversas com antigos colegas ou mesmo com os vizinhos do prédio onde mora -, Perelman é a imagem escarrapachada do "génio maluco". Barba comprida e cabelo desgrenhado, unhas sem cortar há meses, olhar intenso, magro, mal vestido, de higiene duvidosa - como se tivesse a dada altura esquecido que a vida em sociedade requer algumas concessões básicas do lado da aparência e da indumentária. O que não é surpreendente: há quatro anos que Perelman vive num estado de quase reclusão no apartamento modesto que partilha, num bairro não menos modesto de São Petersburgo, com a sua mãe idosa.
Não é a primeira vez que Perelman fica sob os holofotes da fama científica - e também não é a primeira vez que foge deles a sete pés. Em 2006, foi recompensado pelo seu trabalho com a Medalha Fields, considerada o Nobel da matemática. E tornou-se o primeiro, desde a criação do prémio, em 1936, a recusá-lo. Agora, a história parece querer repetir-se na sequência da atribuição, pelo mesmo trabalho, do Prémio Milénio do Instituto de Matemática Clay (CMI), uma fundação privada com sede em Cambridge, Massachusetts, nos EUA.
Maravilhas da matemática
Aquele instituto elaborou, no ano 2000, a lista dos sete problemas matemáticos mais difíceis de sempre e ainda por resolver na entrada do novo milénio - as "sete maravilhas" da matemática, em suma -, e criou um prémio de um milhão de dólares (748 mil euros) para quem conseguisse resolver cada um deles. E justamente, o primeiro problema a "cair", logo em 2002 - a chamada conjectura de Poincaré (hoje velha de 106 anos) - foi resolvido por Perelman.
Mas Perelman não submeteu a sua demonstração para publicação a uma revista da especialidade, como é costume: publicou-a em três prestações no site arXiv.org, um repositório on-line de pré-publicações onde físicos e matemáticos expõem os seus resultados à avaliação dos seus colegas. Uma atitude considerada tão pouco ortodoxa como o seu autor e que, há oito anos, foi uma autêntica estreia na Internet vinda de um matemático reputado (que ele já era na altura). A demonstração por Perelman da conjectura, considerada muito sintética e elegante por quem a percebe, precisaria de vários anos de escrutínio cerrado até os matemáticos poderem concluir com certeza que não continha falhas.
No comunicado emitido no passado dia 18 de Março pelo CMI a anunciar o prémio, o seu presidente, James Carlson, afirmava que "a resolução da conjectura de Poincaré por Grigory Perelman (...) constitui um avanço fundamental na história da matemática, que ficará na memória durante muito tempo".
Mas quando telefonaram a Perelman para lhe anunciar a boa notícia, diz Carlson, citado pelo jornal The Independent, "ele respondeu que tinha de pensar nisso", recusando-se a dizer logo se aceitava o prémio. Os responsáveis do Clay Institute ainda têm esperanças, porém, de obter uma resposta final afirmativa e de conseguir que Perelman vá a Paris, no próximo mês de Junho, receber o galardão e celebrar o resultado.
A proeza de Perelman
O matemático francês Henri Poincaré enunciou a conjectura que tem o seu nome em 1904. Uma conjectura, diz o mesmo documento do CMI, que "é fundamental para conseguir perceber as formas tridimensionais". E nomeadamente, acrescente-se, a forma do Universo.
Mas uma conjectura é, antes de mais, uma proposição matemática que parece ser verdade, mas que se revela muito difícil de provar ou invalidar - e que portanto não pode ganhar, enquanto essa situação se mantém, o estatuto de teorema. E a conjectura de Poincaré resistiu de facto aos embates repetidos dos matemáticos mais aguerridos durante quase um século.
A conjectura de Poincaré tem a ver com uma área da matemática, a topologia, que estuda as propriedades estruturais que certos objectos conservam mesmo quando sofrem deformações extremas mas "contínuas" (ou seja, que não os rasguem nem os furem) - quando sofrem um morphing, para utilizar uma palavra na moda. Por exemplo, para um especialista de topologia, uma bola de futebol, ou a pele de uma laranja, mesmo espalmadas, esticadas, espezinhadas, serão sempre uma esfera (uma superfície cujos pontos se encontram todos à mesma distância do centro). Isto porque, desde que tenha conservado a sua integridade, essa forma tão disforme, irreconhecível, poderá sempre recuperar a sua redondez original através de deformações graduais, contínuas - no caso da bola, por exemplo, bastaria para isso enchê-la com ar devagarinho, cuidadosamente. Já um pneu (ou um donut) nunca se poderá transformar numa esfera por este tipo de procedimento porque tem um buraco no centro - o que o torna radicalmente diferente, do ponto de vista topológico.
Os matemáticos explicam muitas vezes as suas ideias com imagens que para os leigos podem parecer estranhas. Mas, de facto, uma maneira simples de perceber (e demonstrar) que um objecto é uma esfera consiste em imaginar um elástico esticado em redor do objecto. Seja qual for a posição inicial do elástico, se o objecto for topologicamente igual a uma esfera, ao deslizar o elástico sem permitir que deixe de estar em contacto com a superfície do objecto, o elástico poderá sempre ser encolhido até ficar "reduzido a um ponto" e retirado sem danificar a superfície. Pelo contrário, o mesmo nunca poderá acontecer com um elástico colocado à volta de um pneu (ou um de donut) que passe pelo buraco central. Para o "reduzir a um ponto" e o retirar, será sempre preciso rasgar o pneu (ou o donut). Superfícies cuja integridade nunca sofre com o encolhimento do elástico, como a bola de futebol (mas não o donut) são qualificadas de "simplesmente conexas".
Menino-prodígio
Um pouco mais abstracto: tal como um círculo é uma forma unidimensional num espaço a duas dimensões (o plano), uma esfera é uma superfície, ou forma, bidimensional no nosso espaço físico habitual a três dimensões - e, subindo mais um degrau, uma "hiperesfera tridimensional" é uma forma com todos os seus pontos a igual distância do seu centro num espaço com quatro dimensões. E o que Poincaré conjecturou foi precisamente que, tal como acontecia com a esfera num espaço com três dimensões, num espaço a quatro dimensões mesmo as formas mais disformes eram equivalentes a uma hiperesfera tridimensional desde que não tivessem buracos (como os donuts) - ou seja, desde que fossem "simplesmente conexas".
Paradoxalmente, ao longo dos últimos 20 anos, as conjecturas semelhantes a esta em espaços com mais de quatro dimensões foram sendo demonstradas - graças contudo a avanços matemáticos que justificaram a atribuição de várias medalhas Fields. Mas a conjectura original de Poincaré, essa, permaneceu imune às tentativas de resolução até à chegada de Perelman, que teve mesmo assim de desenvolver uma série de técnicas e métodos inéditos ao longo de vários anos para conseguir perceber exactamente o que se passava neste caso e concluir que a conjectura também era válida para a hiperesfera tridimensional.
Perelman foi sempre um ás da matemática e em 1982, ainda adolescente, ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas Internacionais de Matemática. Fez investigação no prestigiado Instituto Steklov de São Petersburgo e, no início dos anos 1990, passou uma longa temporada nos Estados Unidos, convidado consecutivamente pelas universidades de Nova Iorque, Stony Brook, Berkeley. Num artigo de 2006 do jornal The New York Times, um colega norte-americano recorda-o nessa altura dizendo que "parecia Rasputin, com o cabelo e as unhas compridas", e que era uma personagem "um pouco de outro mundo - amável, mas tímido e nada interessado na riqueza material". Alimentava-se de pão, queijo e leite e já na altura gostava de apanhar cogumelos nos bosques.
Foi durante a sua estadia nos EUA que conheceu dois grandes matemáticos envolvidos no esforço de resolução da conjectura de Poincaré - e, a partir daí, tendo percebido que a resolução do problema estava empancada, lhe dedicou toda a sua energia quando regressou a São Petersburgo, em 1995. Depois de anos de silêncio, publicou a sua demonstração em 2002 e voltaria mais uma vez aos EUA, em 2003. A seguir, os seus contactos com o mundo da matemática foram-se tornando cada vez mais escassos, até que cessaram quase por completo.
Desgosto ético
Teria Perelman abandonado a matemática, o mundo? Teria, talvez, perdido a razão? É frequente ouvir-se dizer que os génios matemáticos sofrem por vezes de perturbações mentais - doença bipolar, síndrome de Asperger, depressão grave, entre outras.
Em 2006, a escritora e jornalista Sylvia Nasar, autora da célebre biografia do genial matemático John Nash, que sofria de esquizofrenia - intituladaUma Mente Brilhante (A Beautiful Mind, em Portugal editada pela Relógio d"Água) e que deu também origem a um filme com Russell Crowe no papel de Nash -, esteve na Rússia e conseguiu entrevistar Perelman, um acontecimento raríssimo. E, num artigo publicado na revista New Yorker, ela e o seu co-autor (David Gruber) contaram o que, segundo o próprio Perelman, lhe tinha acontecido.
Ao que tudo indica, o matemático não tinha enlouquecido: estava apenas desgostoso com os seus pares e tinha escolhido, mais uma vez, uma forma peculiar de mostrar o seu desgosto. Estava particularmente enojado com um deles, Shing-Tung Yau, laureado da Medalha Fields em 1982, professor de Matemática em Harvard e nas Universidades de Pequim e Hong Kong. Basicamente, Yau tinha começado por criticar a demonstração publicada em 2002 por Perelman no arXiv.org, argumentando que estava incompleta, e acabado por afirmar, em 2006, que tinham sido investigadores chineses da sua equipa a elaborar a derradeira prova da conjectura.
"Não são as pessoas que quebram as normas éticas que são vistas como estranhas", explicou Perelman a Sylvia Nasar naquele dia que passou com ela a passear por São Petersburgo. "São as pessoas como eu que ficam isoladas." E a propósito de Yau, acrescentou: "Não posso dizer que estou escandalizado. Há gente pior. Claro que muitos matemáticos são mais ou menos honestos, mas quase todos são conformistas. São mais ou menos honestos, mas toleram os que não o são." Perelman não é o único a pensar que Yau não acrescentou nada à sua demonstração; eminentes matemáticos concordam com ele - e o prémio que agora foi anunciado é disso mais uma prova. Yau, por seu lado, ameaçou processar os autores do artigo daNew Yorker por difamação, mas acabou por não o fazer.
Sergei Kisliakov, director do Instituto Steklov, disse ao jornal The Guardian há uns dias que Perelman tem "princípios morais bastante estranhos" e que "reage muito mal a pequenos pormenores que considera impróprios".
Mas uma coisa parece certa: Perelman é fiel aos seus princípios. Quando a atribuição do Prémio Millennium fez acorrer um cortejo de jornalistas à sua casa, conta ainda o The Independent, o matemático terá gritado a um insistente repórter do The Daily Mail, através da porta fechada do apartamento: "Tenho tudo o que preciso!" E a sua mãe terá dito a um repórter do tablóide russo Komsomolskaya Pravda: "Não queremos falar com ninguém; não nos façam perguntas sobre o prémio."
Ninguém sabe qual será a decisão final do génio desiludido. Entretanto, várias organizações de solidariedade e outras entidades russas já pediram encarecidamente a Perelman para aceitar o prémio e doar o dinheiro a uma boa causa.
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