sexta-feira

Visão de fora - por António Vitorino -

Um amigo meu estrangeiro, mas que domina razoavelmente o português, não pôde deixar de me questionar sobre aquilo que considerou serem as estranhas reacções em Portugal à nomeação do governador do Banco de Portugal para o destacado cargo de vice-presidente do Banco Central Europeu.DN
Com efeito, esperava ele, a decisão dos ministros das Finanças europeus deveria ser vista pelos portugueses como uma importante vitória diplomática do nosso país. Sendo pouco frequentes esses momentos, designadamente para um país com a nossa dimensão, mais a mais quando já é um nacional português a ocupar o cargo de presidente da Comissão Europeia, o facto de Portugal ter logrado este lugar deveria ser ainda mais enaltecido, sabendo-se, como se sabe, que, no âmbito da União Europeia, os cargos de relevo são disputados milimetricamente e segundo complexos critérios de equilíbrios entre os Estados.
Lendo alguns relatos de imprensa e sobretudo as reacções de vários dos partidos da oposição, não pôde, pois, deixar de me transmitir a sua perplexidade e de pedir a minha ajuda para melhor compreender o que se passaria entre nós.
Dir-se-ia, a atentar nessas reacções públicas, que, para a nomeação do Dr. Vítor Constâncio, o que afinal menos teria contado teria sido… o próprio Vítor Constâncio!
É verdade que a descrição típica do funcionamento do Banco Central Europeu não permite normalmente que o grande público se aperceba das suas dinâmicas internas, mas os responsáveis políticos nos vários Estados membros da União, que acompanham minimamente os debates internos ao Banco, têm a obrigação de saber que a voz do governador do Banco de Portugal sempre foi altamente respeitada junto dos seus colegas e nos mercados internacionais e que as suas posições sempre foram consideradas e levadas em conta para além do que naturalmente resultaria de alguém oriundo de um país com a dimensão económica e o peso relativo de Portugal.
Por outro lado, noutras versões veiculadas, a escolha visaria abrir caminho a uma futura nomeação de um alemão para presidente do Banco Central Europeu no final do mandato do actual titular do cargo. Sendo certo que os equilíbrios grandes/pequenos Estados e Sul/Norte sempre pesaram nas escolhas dentro da União, a verdade é que desta feita nenhuma garantia formal foi dada a que será a Alemanha a indicar o futuro Presidente do BCE, em contraste, aliás, com o acordo Duisenberg/Trichet, que há alguns anos levou à divisão do mandato a meio do presidente do BCE…
Mas o que mais surpreendeu o meu interlocutor foi a mal disfarçada acrimónia de vários políticos, à esquerda e à direita, por a escolha ter recaído em Vítor Constâncio… Não se trata de tinir a corda nacionalista e chauvinista, de dizer que tudo o que é português é bom! Mas o facto de as únicas vozes críticas terem vindo do próprio país de onde é oriundo o nomeado não deixa de ser significativo sobre o ponto a que chegou a vida política em Portugal!
Foi aí que tive de explicar ao meu amigo o significado da expressão portuguesa "ajuste de contas". Com efeito, é manifesto que alguns sectores políticos portugueses tudo fizeram para sabotar a candidatura do governador do Banco de Portugal, mesmo quando, falhando a compreensão do que representa o funcionamento das instâncias europeias, nesse afã militante, até caíram no ridículo pessoal, como sucedeu na audição feita a Vítor Constâncio na Comissão especializada do Parlamento Europeu.
Deste "excesso de zelo" demonstrado por aqueles que queriam ajustar contas com Constâncio, excluiu-se o PSD, sendo de salientar tal facto neste momento. A decisão, que decerto será endossada pelo próximo Conselho Europeu, prestigia Portugal e constitui um acto de justiça perante as inegáveis qualidades técnicas e humanas do designado vice-presidente do BCE.
Não me cabem dúvidas de que ele estará à altura da pesada responsabilidade que lhe vai ser confiada, a de assegurar a supervisão do sistema financeiro num momento tão decisivo para o futuro do sector e para a credibilidade da Zona Euro em especial. E isso o disse ao meu amigo, que, mesmo assim, não pôde deixar de me confessar como era difícil compreender Portugal quando visto de fora! Poupei-o à confissão de que por vezes até é difícil mesmo cá de dentro…
Obs: Recordo a última frase de - Os Lusíadas - de Luís Vaz de Camões, nosso autor-mor que conclui esse monumento com uma palavra-chave que, ainda hoje, infelizmente, caracteriza tão bem a personalidade colectiva do povo português. Fica, pois, o convite ao regresso à velha obra - que sempre preferi ler em prosa pela pena de João de Barros - na versão lembrada ao povo e recordada às crianças...
Muito provavelmente, este amigo de AV desconhece a obra do mais importante poeta português. Mas ainda bem que temos na Europa alguém que - tendo uma elevada formação tecnico-científica na área económico-financeira e em modelos matemáticos para prever um futuro que nunca chega, tem também interese pela cultura.
Vitor Constâncio não é, portanto, nem um fugitivo que zarpou para Bruxelas deixando em Lisboa um governo em cacos nem é, por outro lado, um mero tecnocrata que só sabe falar de números e de estatísticas, apesar de as declarações de Constâncio - intra-muros - e por inerência de funções - estarem muito associadas às conclusões dos relatórios da Primavera do FMI e da OCDE sobre a economia nacional, e isso também é complicado de gerir numericamente, especialmente porque o crescimento da economia nacional é baixo e lento.
Mas felicite-se VC na sua nova missão.
E vão quatro nas lides internacionais: Durão, Guterres, Sampaio e, doravante, Vitor Constâncio...
Será caso para se dizer: não há fome que não dê em fartura.