sexta-feira

A segunda década - por António Vitorino -

A primeira década do século XXI ficará balizada por dois eventos: os atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001 e a crise financeira de 2008/2009. dn
Estes dois marcos assinalam um ciclo de vida que deixará marcas profundas nos anos mais próximos.
O ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque e ao Pentágono em Washington constitui o evento mais relevante da história mundial desde a queda do Muro de Berlim. Os seus efeitos, no plano das concepções dominantes de segurança (externa e interna), têm inúmeras implicações em termos de alteração das prioridades e de adopção de novos métodos e novos protagonismos na garantia da paz e da estabilidade. A evolução no Oriente Médio e no eixo Afeganistão, Iraque, Paquistão e Irão decorre desta nova agenda de segurança e do encadeamento de eventos com ela relacionados.
O impasse no Iraque, as dificuldades da NATO no Afeganistão, o risco de falência como Estado do Paquistão e a tensão envolvendo o programa nuclear iraniano são peças de uma mesma estrutura que introduziu alterações na relação de forças tanto na região como no plano global.
Por seu turno, a crise financeira global, que eclodiu na sequência da implosão do chamado mercado de subprime nos Estados Unidos da América, veio pôr em causa os fundamentos do processo de globalização e tornou mais visível, no plano económico, a mudança das relações entre os países desenvolvidos e as economias emergentes, muito em especial a China, a Índia e o Brasil.
Assim, quer no plano da segurança quer no plano das relações económicas internacionais, esta década de mudanças profundas trouxe mais incertezas do que respostas. Nos seus diversos planos, pode dizer-se que vivemos anos de transição, ainda que a configuração do mundo em que viveremos permaneça como uma incógnita. Acresce que algumas das tendências que se desenham se prefiguram como contraditórias entre si.
São, pois, tempos de tensão. Os pólos dessas tensões, neste momento, equilibram-se, sendo difícil antever quais acabarão por prevalecer.
A crise económica indicia uma retracção do comércio internacional e um risco do proteccionismo. Mas, por contraponto, o progresso tecnológico impele à globalização comunicacional e a uma acrescida tomada de consciência das interdependências, muito em especial no que toca às alterações climáticas, à segurança dos bens alimentares e ao acesso e aprovisionamento energético.
A natureza multifacetada e assimétrica das ameaças à paz e à estabilidade leva ao reforço das políticas securitárias, mas, por contraponto, a pressão para os movimentos populacionais, sejam voluntários sejam forçados, sublinha a porosidade das fronteiras e propicia o encontro e, muitas vezes, o confronto de culturas e identidades.
A reacção do fechamento sobre as lógicas identitárias enquanto instrumento de protecção acentua-se, ao mesmo tempo que a afirmação da língua inglesa como língua universal e a pujança dos intercâmbios culturais geram novas plataformas globais de diálogo e de interacção, de que a Internet e as ferramentas nela disponibilizadas são exemplos de um universalismo cidadão e individual contrastante.
O mundo das facilidades de acesso ao crédito e aos mecanismos criativos de financiamento parece ter conhecido uma retracção duradoura, mas, ao mesmo tempo, a persistência de políticas de moderação salarial e de incentivo ao consumismo gera um fosso crescente entre expectativas e realidades. No topo desta tensão, as desigualdades crescem, quer por efeito do aumento do desemprego estrutural quer pelo recuo da evolução registada na luta contra a pobreza, estando todos os países muito aquém dos objectivos do Milénio fixados pelas Nações Unidas.
No conjunto, as narrativas da acção colectiva mostram-se prisioneiras ou de referenciais do passado que deixaram de ser mobilizadores ou de derivas populistas e radicais que apenas podem conduzir ao desastre.
Nestes tempos de transição, as incertezas provocam angústias, mas são também os tempos de transição que podem gerar novas utopias redentoras. Sobram os profetas da desgraça, faltam os arautos da esperança. Destes terá de ser a segunda década do século.
Obs: Divulgue-se, apostando nos "arautos da esperança" que tardam a chegar.