Democracia à la carte e a ética republicana
António Vitorino referiu ontem no Notas Soltas que os programas de governo fixam objectivos, mas não explicam a forma de os alcançar. Isto é assim, precisamente, porque tal decorre da arte da governação de quem está no poder e que consegue, ou não, atingir esses objectivos.
Por outro lado, não deixa de ser curioso que as oposições queiram agora desvirtuar a essência da democracia representativa procurando ver nela uma condição, se se trata de maioria absoluta, e outra condição se estivermos perante uma maioria relativa. Já não valendo a essência da vitória em democracia que reside na obtenção de metade mais um.
Até parece que a governação em contexto de maioria relativa imputa às oposições a responsabilidade de 50% da governação e ao governo os restantes 50%, cabendo a Cavaco desempatar a aprovação das leis segundo a vontade do freguês e a rede de simpatia de Belém relativamente aos dirigentes da oposição. Se assim fosse, não seria difícil imaginar que mesmo com vinte e tal por cento Cavaco, a partir do farol de Belém, colocaria a sua ex-pupila Manuela Ferreira Leite em regime de piloto automático com o botão ligado à governação. E a Manela governaria mesmo sem ter qualquer legitimidade democrática.
Por este andar ainda teremos uma definição emergente de democracia assente num sistema de regras formais segundo as quais a governação é exercida mediante a consulta prévia ao PCP, BE e CDS, sendo certo que quando as coisas correm bem na sociedade e na economia tais êxitos são assacados à oposição, quando, ao invés, as coisas correm mal tal é imputado única e exclusivamente ao governo. Deste modo, o governo carregaria apenas com os azares, à oposição caberiam os sucessos.
E quando os portugueses fossem votar no próximo acto eleitoral para eleger a composição do novo governo votariam ao contrário daquilo que pensam ser as suas convicções, no fundo a garantia suplementar de que para colocar um PM em S. Bento bastaria votar nas oposições.
Qualquer português bem formado veria aqui os indícios da perversão do sistema democrático, mas os líderes da oposição identificam aqui as virtudes do sistema representativo da democracia pluralista em Portugal.
É isto a democracia à la carte...
PS: No passado recente um ex-titular da pasta da Defesa (da defesa!!!) demitiu-se porque um jornalista do Público, conhecido pelas quezílias que alimenta contra ministros e agentes do poder, insinuou que o referido ex-governante e mais tarde Comissário europeu da Justiça e Assuntos Internos (considerado o melhor entre os seus pares na Europa) não teria observado a lei em matéria fiscal. António Vitorino não teve com meias medidas, demitiu-se com isso demonstrando ao país não estar agarrado ao poder e, ao mesmo tempo, deu um sinal de virtude democrática e de ética republicana dignificando o Estado e as suas instituições. Mais tarde apurou-se que aquele governante não tinha violado a lei mas, nem assim, reintegrou o governo que abandonara. Ao jornalista, que se saiba, nada lhe aconteceu. Hoje, ao invés, o Presidente da REN procura inverter aquele princípio e ética republicana e agarra-se à função como forma de sobreviver às acusações. Ora, tratando-se duma empresa participada do Estado vigoraria aquele princípio e não a vontade pessoal do seu presidente, pelo que se aconselharia à suspensão da suas funções para clarificar a situação por precaução e, se fosse caso disso, seguir-se-ía a sua reintegração. Mas parece que o exemplo de ética republicana legado por António Vitorino não fez escola, e são, hoje, os exemplos menos claros aqueles que degradam as condições sob as quais a nossa democracia e justiça operam e isso não é bom para o Estado de direito e o combate aos alegados indícios de corrupção em Portugal que envolvem hoje empresas privadas e empresas participadas pelo Estado.
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