Tentações caseiras - por António Vitorino -
DN
Há semanas assim, onde os temas possíveis de uma crónica de jornal se sobrepõem, tornando a escolha particularmente difícil. Encerradas as urnas e contados os votos, a tentação maior é a de começar a traçar os cenários da governabilidade futura do País, na ausência de uma maioria absoluta de um só partido.
Em simultâneo foi dado o tiro de partida para as eleições autárquicas, onde a relação de proximidade entre eleitos e eleitores sobreleva na escolha dos portugueses. Por este lado, a tentação é de antecipar o impacto das legislativas nas autárquicas, se algum tiver, embora no voto do dia 11 de Outubro não esteja em causa uma só opção susceptível de leitura nacional, mas sim 308 escolhas limitadas geograficamente. O precedente ingrato de 2001, onde se tiraram ilações nacionais de eleições locais, não parece, contudo, muito presente desta feita, dada a proximidade temporal dos dois actos que até ajuda a sublinhar a distinta fonte de legitimidade democrática em cada um dos dois tipos de sufrágio.
Acresce que nenhum comentador que se preze resiste à tentação de apresentar a sua leitura própria da declaração do Presidente da República intercalada entre os dois actos eleitorais, recheada de frases crípticas e silêncios ruidosos.
No limbo fica ainda a tentação de especular sobre que tipo de cristalização futura se operará no PSD após a derrota eleitoral, já todos tendo percebido que estamos não propriamente num armistício provocado pelas eleições autárquicas, mas, antes, numa espécie de interregno com regente, em que os herdeiros se vigiam mutuamente e fazem contas às tropas que pretendem mobilizar.
Como se vê, temas não faltam e a tentação do cronista só pode pecar pela dispersão a que convida a fartura.
Contudo hoje, 2 de Outubro, o factor mais relevante que pode condicionar muitas das nossas leituras políticas nacionais joga-se fora de portas. Absortos com os nossos momentosos temas do burgo, até corremos o risco de não nos apercebermos de que os irlandeses vão hoje mesmo às urnas para, pela segunda vez, referendarem o Tratado de Lisboa. E embora o debate político nacional, nas recentes eleições legislativas, tenha soberanamente ignorado os temas europeus (como, aliás, sucedeu nas eleições alemãs que ocorreram igualmente no domingo passado…), ninguém pode ignorar que o desfecho do referendo irlandês terá uma repercussão directa na nossa vida pública, dependendo também do seu resultado as próprias condições de governabilidade do nosso país.
Uma vitória do "não" reenviará a União para uma crise de incerteza institucional e colocará em cima da mesa várias soluções de saída que, à partida, não são consensuais entre os Estados membros. Uns defenderão o abandono de qualquer perspectiva de reforma institucional no curto/médio prazo, resignando-se a viver com as limitações e omissões do Tratado de Nice. Outros entenderão que haverá que prosseguir com quem quiser trilhar o caminho do aprofundamento da integração delineado no Tratado de Lisboa, o que representará um desafio à coesão dos 25 países que já ratificaram o Tratado, não sendo difícil antever que, entre estes, nem todos estarão dispostos a integrar um tal "núcleo de vanguarda". Alguns poderão mesmo tentar construir novas formas de cooperação fora do quadro da União (designadamente no domínio da segurança e defesa), o que só poderá suceder em termos credíveis se tal cooperação puder contar com a participação da França, da Alemanha e do Reino Unido, solução longe de se poder ter por adquirida…
Uma crise de bloqueamento institucional da União é exactamente o que a Europa não precisa: para sair da recessão e da crise económica e financeira, para assumir as suas responsabilidades na conferência das alterações climáticas, para delinear o modelo económico e social da Agenda de Lisboa para o pós-2010.
No final do dia de hoje saberemos o que os irlandeses decidiram. E, se votarem como indicam as sondagens (que dão vantagem ao "sim", embora ainda com um elevado número de indecisos), poderemos então voltar com outra tranquilidade às nossas tentações caseiras. Obs: Publique-se na esperança de regressarmos à tranquilidade caseira, questionada pela Europa, pela crise económico-financeira, pelos desatinos pseudo-informáticos de Belém e o mais.
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