quarta-feira

O paranóico

Nossa cultura é paranoizante. Ensina que se deve desconfiar até da própria sombra.
"Todo conhecimento é paranóico." (J. Lacan)
- Imagine que tem uma posição de responsabilidade e de liderança numa organização e demite um colaborador seu, mas depois constata que esse mesmo colaborador continua a trabalhar consigo.
- Imagine que é fautor de provas que visam incriminar terceiros, mas fala em seriedade, transparência e justiça no espaço público.
- Imagine que fala em cooperação mas, na prática, molda a sua conduta pelo veio da conflitualidade, da intriga e da parcialidade.
- Imagine que percebe ataques ao seu carácter ou reputação sendo rápido a reagir, mas tratando-se doutro actor com quem é suposto manter alguma cooperação institucional já não adopta a mesma conduta, se possível deixando-o queimar em lume brando na praça pública.
- Imagine que enviava um colaborador seu para manipular terceiros tendo por objectivo colocar uma notícia nos media a fim de incriminar um PM em funções mas, ao mesmo tempo, fala das férias, do tempo, da praia e do seu estado d espírito.
Isto revela que confiar nos outros é a coisa mais estúpida que existe, mas também não se pode viver doutro modo. Aliás, as relações humanas vivem e organizam-se com base nessa confiança. Se os semáforos não funcionassem, se o sistema bancário não funcionasse, o mesmo se diga do sistema de saúde, educação e o mais... o que seria de nós?! Seria o caos.
Daqui decorre que não obstante confiarmos nos outros ser um risco, não conseguimos passar sem esse cimento social, ou seja, fomos concebidos genéticamente para confiar. Fácilmente esquecemos desconfianças, traições, vinganças e rancores (só alguns). De modo que não vale a pena ser paranóico e confundir um microfone com o sininho ao pescoço dum gato que se passeia pelos jardins do Palácio Rosa.
O PR anseia por ser justo e honesto, até porque é essa a imagem que deu de si ao país durante décadas, além de humilde e de comer bolo rei de boca aberta. Mas ao primeiro sinal esse sentido de justiça é discutível, pois a primeira medida que tomou foi demitir o seu colaborador mais fiel e antigo - para livrar a sua própria pele do cancro político que criara. Fernando Lima, ao que parece, falou em nome de Cavaco (estaria mandatado para o fazer), o que implicaria que Cavaco soubesse préviamente dessa démarche de Lima junto de Alvarez, jornalista do Público do Sr. Fernades da Sonae. Pois ninguém está vendo Lima marcar um rendez-vous com um colega seu jornalista para lhe fazer um ditado sem que préviamente Cavaco o tenha instruído com minúcia acerca do trabalhinho que o dito Lima teria de executar. Executou mal.
No fundo, a razão e a justiça são as grandes armas do paranóico, já que a sua razão e a sua justiça, na medida em que o paranóico não está talhado para o Estado de direito - onde a razão se discute e a justiça reside nos códigos. Isto significa que para o paranóico a sua verdade tem de sair vencedora e a sua justiça tem de se fazer a todo o custo (demissão do pobre Nandinho Lima).
E quando se fala em segurança, não é do SIS ou do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal que se fala. Do que se fala, por mais ridículo que se trate, é dum anti-virus do Panda ou um velhinho Norton que tornava os PCs ainda mais pesados. De facto, o PR Cavaco Silva denunciou uma gritante ignorância funcional acerca de muita coisa ao mesmo tempo. Se tivesse de fazer exames psicotécnicos nem segurança poderia ser. Além de desconhecer Os Lusíadas. Algumas pessoas, mais limitadas, certamente, ainda vão na converseta demopopulista e autojustificatória de Cavaco cujo discurso de ontem foi, a todos os títulos, lamentável: descurou propositadamente o essencial: Lima foi ou não mandatado por ele para plantar uma notícia falsa nos media a fim de incriminar Sócrates com base nas falsas escutas que S. Bento estaria a fazer a Belém?! Não respondendo, foi a isto que cavaco acabou por responder. O resto foram derivações da silly season que qualquer estagiário de semântica e hermeneutica intui à légua.
Tudo isto entronca com a teoria geral do paranóico. Alguns isolam-se e vão para o campo onde se dedicam a treinar galinhas, outros pretendem domesticar bois com chicotes, outros ainda pretendem montar avestruzes como se cavalos se tratasse. Outros ainda, não tendo gosto pelas coisas do campo e não sabendo ficar em casa para evitar estragos, dedicam-se à identificação das vulnerabilidades computacionais que sempre existiram, até na NASA e no Pentágono, embora pareçam estar a revelar a descoberta da pólvora pela 1ª vez na vida reportada directamente de Boliqueime. Cavaco, de facto, deu de si uma triste e pobre imagem - pessoal, política e institucional.
Nuns casos opta-se por seguir estratégias temporárias para iludir uma comunidade, fazendo-se passar por aquilo que nunca se foi, mitigando seriedade com sacanagem, transparência com negócios opacos envolvendo acções da SLN não cotadas em bolsa mas igualmente rentáveis, ou meter a intelligence como estratégia de condicionamento de terceiros no sistema.
Em rigor, quando se está na esfera pública, com intensa exposição política, existe sempre um problema que tem de ser resolvido, é o da gestão dos sentimentos. Mormente num contexto eleitoral complexo e problemático, repleto de traições, vinganças, lutas e humilhações, rancores e ambições desmedidas - onde existe sempre espaço para o ressentimento, raiva e vontade de destruir políticamente o outro, e escasso espaço para a solidariedade, ou cooperação institucional ou estratégica, como diria o "outro", para inglês ver.
Esta é hoje uma das grandes questões colocadas sobre a mesa: como é que Cavaco e Silva vai conseguir domesticar o seu ciúme político relativamente a Sócrates - que terá de indigitar para formar governo e com tem terá, forçosamente, de coabitar?! Num quadro complexo: um PR muito enfraquecido lidando com um PM líder duma maioria relativa, logo dum governo a prazo e tendencialmente instável.
Com isto não estamos defendendo que o PR é paranóico, o que pretendemos sublinhar é que se (até) Freud não fosse um homem teimoso e talvez um pouco paranóico a Psicanálise, ciência fundada por si, também não teria avançado.
O problema de Belém é que é o excesso (invocando, ridiculamente, o caso das escutas que nunca existiram, senão na mente trapaceira dum PR ressentido com o caso do Estatuto dos Açores) que caracteriza a insanidade política de Cavaco, que prefere hoje o conflito à cooperação, a confusão à transparência, o truncamento de dados ao rigor, etc.
Naturalmente, um quantum de desconfiança terá sempre de existir, ela é até saudável para aferir comportamentos e proteger-nos dos riscos e incertezas do mundo actual. O problema é que Belém já não sabe dosear essa carga, e de lá só tem soprado uma tal intensidade de desconfiança, uma paranóia que acaba por interferir com a própria qualidade do pensamento político, social e económico que é imperioso ter quando se está em elevadas funções do Estado.
Talvez por isso Sócrates tenha ganho as eleições legislativas, pois soube sempre manter elevação no discurso e na sua atitude, e hoje acabou por puxar as orelhas a cavaco quando disse que o assunto das "escutas", engendrado por Belém, está enterrado e que não tenciona regressar a ele. Parecia um Sócrates a dar uma lição ao tio Cavaco que há muito já perdeu o norte.
Nesta medida Sócrates revela ser a "boa moeda" por contraponto à "má moeda" (que em tempos Cavaco cunhou a Santana) e que hoje é representada pelo próprio Cavaco; vemos um Sócrates estabilizador por contraponto a um Cavaco intriguista, quezilento e a caminho acelerado da insanidade, intensamente desconfiado de tudo e de todos, até do seu próprio staff presidencial. O que prova que Cavaco já começou a desconfiar da sua própria sombra.
Estas mutações bruscas de comportamento são reveladoras da personalidade do PM (construtivo e estabilizador) e do PR (conflituoso e fragmentador).
Diria, para concluir, o seguinte: a identificação do psiquismo de quem nos governa é de extrema importância não apenas para determinarmos o nível e consistência das políticas públicas, como também o grau de cooperação e/ou conflitualidade no sistema. Últimamente, e duma forma lamentável, temos constatado essa veia no PR que ao não desmentir publicamente a veracidade das alegadas escutas, porque interessavam politicamente à sua amiga Ferreira Leite em contexto de campanha eleitoral, deixou intencionalmente que Sócrates fosse queimado a lume brando na arena pública, ficando sob suspeita.
Eis o objectivo de Cavaco. Ao invés do que Sócrates fez com Cavaco, ao afirmar que o PR nunca tinha referido a questão das escutas, mas sim um seu assessor - o mesmo que foi demitido. Estas nuances são de extrema importância. Deus e o diabo, como diria AV, estão nos detalhes...
Ao realismo de Sócrates contrastamos o lunatismo político de Cavaco, o que me leva a supôr uma de duas coisas:
- ou Cavaco está como está em resultado do envelhecimento precoce que tem sido alvo nos últimos anos;
- ou é a sua má consciência e má fé política que o tem empurrado para uma perda progressiva das signifcações e dos símbolos com elevado significado político para a República, a ponto de não se importar em envolver o SIS nas tramóias congeminadas por si na Travessa do Possolo - de que Fernando Lima terá sido seu vigário na cadeia global dos acontecimentos que se desnudaram e deixam mal Belém na fotografia de família, manchada pelos assessores intrometidos em programas eleitorais e no apoio activo à entronização de Manuela Ferreira Leite no Congresso de Guimarães o ano passado.
Atrevo-me mesmo a dizer que caso Cavaco não consiga domesticar esses seus delírios que culminam em pensamentos desorganizados, em que os factos não colam entre si gerando uma imagem de conjunto completamente estilhaçada, com associações perdidas e uma racionalidade política ausente, então Cavaco caíu no seu próprio pântano político que o paralisará, e um homem assim não conseguirá andar, e não andando torna-se impossível concluir com alguma dignidade o seu mandato, nem mesmo empurrado por Sócrates de um lado com a muleta do SIS do outro.
Requiem por cavaco..., na dobra dos sinos!!!
Adenda:
Imagem picada no Jumento
STRANGE LOVE by Depeche Mode

Ryuichi Sakamoto - Love and Hate (Live 1994)