A memória do tempo que passa: a adesão da Túrquia à UE
A recente viagem política (e de negócios) do PR, Cavaco Silva à Túrquia pode ter várias leituras e reabriu, em tese, a urgência da adesão da Túrquia à UE. No meio deste enredo acabei por não entender se a convicção de Belém, por ser amiga do empresariado nacional (o que só fica bem), procurou rasgar novos mercados encontrando aí uma nova fonte de procura de bens e produtos nacionais que demandasse a economia portuguesa - que passaria a exportar mais para esse mercado gigante que é a Túrquia; ou se nele prevalece uma convicção política - menos ligada aos mercados - e mais relacionada com a Segurança e a Estabilidade regional que a adesão da Túrquia na UE "inevitavelmente" implicaria.
Seja a necessidade de mais mercado ou de mais paz e segurança na Europa e no mundo, são ambas razões atendíveis, por isso o Sr. PR está de parabéns.
Por outro lado, e num plano mais macro-político, recordo que os EUA vêem desde a década de 90 do séc. XX exercendo a sua diplomacia e soft power (para citar J. Nye) no sentido de sensibilizar os governos europeus para admitirem a Túrquia no seio da UE, tanto mais que é um membro da NATO, importante elo da cadeia de valor político da engrenagem de defesa Ocidental. E aqui os EUA têm uma posição compreensível, pois trata-se de compensar um aliado leal que, desde Yalta (1945), marco da Guerra Fria contra o comunismo soviético (e concentracionário, coisa que Sartre nunca anteviu e Aron sistematizou até à medula), a Túrquia esteve sempre à altura para promover os valores políticos da Liberdade, da Paz e da Segurança internacionais que integram a civilização do Ocidente europeu - contra o comunismo soviético que conheceu no camarada José Estaline (uma referência para Jerónimo e Louçã) - e outros ditadores sanguinários que se lhe seguiram e, hoje, volvidos mais 70 anos ainda continuam a ter seguidores nalgumas bancadas parlamentares do nosso querido hemiciclo, mormente do PCP.
A Túrquia foi sempre um aliado do Ocidente que hoje ninguém pode (e deve) esquecer, além dum imenso mercado de 70 milhões d' almas (e em 2020 quantos serão?!) que representa uma oportunidade de negócios para milhares de empresas e para milhões de pessoas. Até mesmo uma "ponte" diplomática com o Médio Oriente - cujo problema secular israelo-palestiniano ainda está longe de ser resolvido, mas que a Túrquia poderia - uma vez integrada na UE - ajudar a resolver. Tudo hipóteses que os cenários tendem a elaborar.
Talvez Belém, volvidas as exportações de vinho, já tenha pronta a bateria de cenários, com ou sem a ajuda de Joaquim Aguiar. Sem.., fica mais difícil...
Uma questão que se pode colocar é saber: quem paga os custos dessa compensação política?! A Europa ou os EUA? ou ambos...
O mais curioso é que ainda hoje, creio, os EUA exigem vistos para os seus visitantes turcos, mas, paradoxalmente, exigem aos europeus que liberalizem as suas fronteiras aos trabalhadores e às famílias turcas. Não sei se hoje Obama pensa desta forma.
Mas é aqui que a bota não bate com a perdigota, como diria a minha avózinha, já que, na essência, os turcos não são, nunca foram europeus. Percebe-se isso quando se visita Istambul ou Ankara, aquilo é outro mundo, outra civilização, outros valores, outra cultura, outros cheiros, outra identidade, outra arquitectura, enfim, outra forma de ser e estar na vida - se bem que seja um povo (tal como nós, potugueses, que sabe e gosta de receber), tal a sua hospitalidade.
Ter tido um Kemal Ataturk é importante, amante da civilização ocidental que serviu para modernizar a Túrquia, mas hoje esse argumento fundacional não basta para que as portas da UE se escancarem a Ankara. Nada disto faz da Túrquia um país europeu. E se a Europa conheceu o Iluminismo e recebeu a herança do Cristianismo, a Túrquia acolheu outra escala de valores, revendo-se no Islão, procurando ver aí a fonte da modernidade e do progresso.
Esta realidade religiosa e socio-cultural distinta faz com que, à priori, a Túrquia não seja mais um Estado a integrar a UE, e se assim é - resta saber se com a adesão da Túrquia na Europa não será esta que altera a sua identidade (!?), tendo de acolher as realidades do mundo muçulmano. E, como sabemos, não é da competência da Europa, pelo menos isso não consta das competência formais de Durão barroso (e demais instituições europeias), que continua a fazer discursos ocos sobre a globalização acartando a saquinha de farinha no Darfur sob o olho das câmaras da CNN, reformar a Túrquia pelo padrão e escala de valores ocidentais, assim como os limites da UE terminam onde irrompe as densas e identitárias fronteiras da "fábrica e do escritório" do mundo, China e Índia respectivamente.
Talvez por este conjunto de razões as circunstâncias tenham levado alguns políticos, hoje analistas do fenómeno político global, a entender que a haver reforma no seio da civilização islâmica - ela terá de eclodir pela mão dos próprios turcos, e não sob influência (cultural) dos europeus ou ainda, para inquinar mais esta equação, dependente dos fundos comunitários que, eventualmente, a Túrquia receberia na sequência da sua adesão à UE, como qualquer outro Estado-membro que beneficiou dessas vantagens infra-estruturais, como contrapartida de realizar reformas em linha com os valores e dinâmica comunitária. Mas neste caso, havia perfeita sincronia cultural e identitária e valores comuns na escala axiológica.
Contudo, a Túrquia tem mais moderados do que radicais, o que é um bom "cartão de visita" para essa putativa adesão, resta saber se a adesão da Túrquia, pela sua específica natureza cultural e civilizacional, ou seja, pela sua idiosincrasia, reflecte mais uma adesão no quadro dos sucessivos alargamentos (a seis, a quinze, a vinte e cinco depois a vinte e sete).
Por último, recordo uma conferência em 2004 relativa ao tema da adesão da Túrquia na UE, proferida pelo ex-Comissário da Justiça e Assuntos Internos, António Vitorino (e outros conferencistas), e como hoje encontrei esses papéis na minha modesta biblioteca, auxiliada pelo bloco de notas que uso ao estilo de Umberco Eco (presunção minha), recuperei as minhas próprias notinhas como registo das ideias avançadas nessa conferência em Lisboa:
(...) e já nessa altura, - recordo - o ex-Comissário da Justiça e Assuntos Internos supra-referido defendeu um prazo de 10 ou 15 anos para essa adesão da Túrquia à UE. Talvez devesse ter abatido agora o tempo transcorrido mas entrementes a senhora Merckel e o senhor Sarkozy chegaram ao poder e diferentemente dos seus antecessores (Schroeder e Chirac) passaram a ser contra a adesão plena da Túrquia... Logo, manter os 10/15 anos, - defendia António Vitorino -, pareceu ser o mais razoável à espera que os sucessores dos sucessores voltem a ser favoráveis à adesão da Túrquia... Acresce também que as reformas na Túrquia ficaram entretanto mais lentas do que se esperava. Talvez por falta de incentivo europeu.
Objectivamente, estas notas de conferência que hoje aqui recuperei parecem contrastar com o subjectivismo e irrealismo da pressa e o mar de facilidades que o Sr. PR difundiu na Túrquia (talvez inconscientemente), na Universidade do Bósforo, por ocasião da recente viagem de negócios que fez aquele país para angariar novos mercados para a economia nacional. O que até é saudável.
Todavia, pergunto-me se Cavaco Silva tem plena noção deste nó górdio que se coloca à Europa com a adesão da Túrquia (e no timing que ele sugeriu), não apenas porque hoje as lideranças europeias são inexistentes, como também a arquitectura institucional da UE, tal como a conhecemos, não é suficientemente ajustada a um alargamento desta envergadura que, na prática, iria implicar um grande aprofundamento.
Confesso, para concluir, que certos discursos políticos se me afiguram mais como aqueles teatros compostos por obras de ficção, seja por que as circunstâncias económico-empresárias assim o ditam, seja porque no momento discursivo aquelas foram as palavras e a formulações encontradas (é o risco do improviso!!, Ferreira leite faria pior, certamente!!!), seja ainda por que aqueles que criticam a classe política de prometer aquilo que nunca cumprem, são, precisamente aqueles que cometem os mesmos erros com a agravante de não terem essa consciência.
Só o desenrolar histórico irá dar ou tirar a razão a Cavaco quando antevê grandes facilidades (temporais e outras) para a adesão da Túrquia na UE, mas, para já, uma coisa é certa:
- Belém também faz parte (ainda que a contragosto) da famosa classe política (tão mal afamada pelas promessas pouco cumpridas) e, no final destas peças políticas, somos forçados a concluir que os protagonistas e o coro deste teatro - a quem nem a "Dona Constança" falta - removem a maquilhagem e devolvem-se à realidade, onde descansam, até à próxima representação.
A política está repleta de discursos que depois não encontra respaldo na realidade proclamada.
Já agora, uma questão final: alguém sabe o que Durão barroso pensa da integração da Túrquia na UE, ou será que a Europa só ficará a saber o que o dito pensa após o presidente da Comissão Europeia em funções ter consultado os oráculos da senhora Merckel e do excêntrico Sarkosy?!
Um dos grandes problemas de Durão (na Europa), quando um dia a história da Europa dos últimos 50 anos se fizer, é que se arrisca a ficar na história com menos história do que a História feita por alguns ex-Comissários europeus que, de comum, só têm a nacionalidade.
Dedicada ao António, um amigo d' hoje, um amigo de sempre.
Sergio Godinho - Primeiro Dia_____________________________________________
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