segunda-feira

O reforço do Estado - por Francisco Sarsfield Cabral -

O reforço do Estado, in Público
O intervencionismo estatal imposto pela crise financeira, primeiro, e pela crise económica, depois, deslocou a anterior fronteira entre Estado e mercado. Mas as coisas não são tão simples como parecem.
Há trinta anos deu-se uma viragem pró-mercado, com Reagan e Thatcher. O predomínio do capitalismo liberal anglo-saxónico trouxe maior eficiência económica. No entanto, a crença nas virtualidades do mercado foi longe demais. Agora o pêndulo inclina-se para o outro lado.
As falhas que levaram ao actual desastre não foram apenas dos supervisores – foram sobretudo da deliberada ausência de regulação. Aconteceu nos novos produtos financeiros e nas instituições para-bancárias (o tal shadow banking system).
Entretanto, nos Estados Unidos baixaram os impostos para os ricos (menos Estado...). E surgiu a moda de substituir as taxas progressivas nos impostos sobre o rendimento por uma taxa única, mudança que se concretizou na Estónia e na Roménia.
O problema é que, desde há trinta ou quarenta anos, a democratização económica promovida pelo capitalismo industrial (que, principalmente nos EUA, transferiu a maioria do proletariado para a classe média) foi substituída por um crescente alargamento do leque de rendimentos. Daí a revolta da classe média americana, a exigir mais Estado e não menos.
Às injustiças fiscais somaram-se as tentativas de Bush para privatizar a (pouca) segurança social dos EUA, transferindo riscos da sociedade em geral para cada indivíduo. Essas propostas pareceram ao Nobel da Economia Robert Solow (em artigo na New York Review of Books), num primeiro momento, tirarem o “social” à Segurança Social – alguns minutos depois, percebeu que também tiravam a “segurança”. Algo que a presente crise tornou evidente.
Esta crise vai, naturalmente, alterar ideias e práticas em matéria de regulação de mercados, de impostos e de protecção social. Mas o peso do Estado já estava a aumentar, sobretudo nos EUA, muito antes da crise. E nem Thatcher conseguira reduzir o peso do Estado na Grã-Bretanha.
Os conservadores tradicionais queriam limitar o poder do Estado na economia e na sociedade. Por isso detestavam não só despesismos públicos como défices orçamentais. Não era essa a visão dos neo-conservadores (daí serem “neo”...), que inspirou Bush e Cheney.
Bill Clinton deixou um excedente nas contas federais. Bush transformou-o em sucessivos défices, considerados por Cheney como algo irrelevante. Em vez de um Estado limitado, a ideologia neo-conservadora fomentou o big government.
E não apenas na economia. As despesas militares cresceram brutalmente, sobretudo com a guerra do Iraque. A ideologia dos neocons visava a afirmação sem limites jurídicos ou éticos do poder militar americano. Até para impor a democracia noutros países, se necessário à bomba.
Nos EUA a intervenção do Estado também cresceu na área da segurança. O 11 de Setembro deu pretexto para tudo: para escutas sem autorização judicial, para torturar suspeitos de terrorismo, para negar a esses suspeitos qualquer protecção legal.
A ameaça terrorista teria necessariamente de levar a um novo equilíbrio entre liberdade e segurança. Mas a política de Bush elevou a interferência estatal na vida privada dos cidadãos a níveis perigosos. O big brother de Orwell não anda longe.
Pior: ao “justificar” a tortura e a deslocação clandestina de prisioneiros para países onde não se respeita o direito, ao manter Guantánamo, etc., a administração Bush deu uma machadada na credibilidade moral dos Estados Unidos, cujos ideais traiu.
Acresce que, sobretudo por influência de Cheney (o vice-presidente mais poderoso da história americana), a Casa Branca foi aumentando os seus poderes, em prejuízo do Congresso e da transparência política. Algo que terá feito dar voltas no túmulo aos founding fathers que redigiram a constituição americana há mais de duzentos anos.
O actual regresso do Estado é, portanto, relativo. A crise veio acentuar, na economia, uma tendência já anteriormente bem visível também noutras áreas.
Antes do colapso do comunismo, a estatização tinha má fama. Desaparecido esse colectivismo tirânico e ineficaz, e com ele a guerra fria, esfumaram-se também as antigas reservas ao poder estatal. A ideia de que, antes desta crise, os americanos viviam sob um Estado mínimo, ou quase, é pura fantasia.
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Obs: Divulgue-se.