segunda-feira

Danos colaterais - por Francisco Sarsfield Cabral -

Danos colaterais
Parece ter sido bem sucedida a inédita operação de salvamento do sistema internacional de crédito, lançada há um mês por Estados e bancos centrais. Vejam-se as sucessivas descidas da Euribor. Assim se evitou o colapso desse sistema, que teria sido uma catástrofe.
O facto de continuarmos em plena crise financeira, com uma séria recessão económica internacional pela frente, não deve levar a esquecer que escapámos ao pior. E escapámos graças a uma intervenção maciça do poder político nos mercados.
A intervenção estatal era e é indispensável. Mas, como tudo na vida, tem custos. Importa estar consciente disso para limitar, tanto quanto possível, os danos colaterais da operação.
Por exemplo, o aval que o Estado português deu – e bem – aos bancos, para que estes se possam financiar no estrangeiro em condições razoáveis, terá reflexos negativos no chamado “risco da República”. Isto é, no juro mais alto que o Estado português terá de pagar quando emitir títulos da dívida pública. É um encargo adicional para as contas públicas.
Mais importante, a operação de salvamento do sector bancário leva a que outros sectores, de menor importância para o funcionamento geral da economia, peçam aos governantes ajudas semelhantes. O sector automóvel americano, por exemplo. Ora não há razões sérias para que na indústria automóvel dos EUA, em crise há longos anos (decerto muito agravada nos últimos meses), não funcionem as regras normais do mercado, incluindo eventuais falências. Aliás, depois do sector automóvel, outros poderão vir, como a aviação civil.
E há quem aproveite o ambiente propício ao intervencionismo estatal para avançar com medidas proteccionistas. Na Europa, os campeões do proteccionismo nacional não são de esquerda – são Sarkozy e Berlusconi. Este gaba-se de ter salvo a Alitalia, à custa do contribuinte italiano. E Sarkozy anunciou um fundo estatal para impedir que as grandes empresas francesas sejam compradas por estrangeiros. É a negação do mercado interno da UE, à qual a Comissão Europeia terá que se opor mais vigorosamente.
E temos, ainda, a questão dos investimentos públicos. Em Portugal, estes só farão sentido se concretizarem aquilo a que o ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga chamou prioridades estratégicas, redefinidas em função da crise (Expresso, 25.10.08). Tanto mais que investir implica maior endividamento externo, que já é enorme. Ora não parece prioritário construir o TGV ou mais auto-estradas (cuja densidade, entre nós, é a maior da Europa). Além de que nada garante que o poder político decida grandes empreendimentos em função de critérios de racionalidade económica e social - e não para favorecer amigos e financiadores de partidos.
E aqui entronca o pior efeito para Portugal desta onda estatizante. Nunca tivemos uma classe empresarial autónoma do Estado. Viver à sombra protectora do poder político explica boa parte do nosso atraso económico. O intervencionismo estatal imposto pela crise agravará essa dependência, de que o Governo gosta: veja-se a espantosa lei das nacionalizações, aprovada em anexo (!) ao diploma sobre o BPN e inicialmente exigindo apenas um decreto regulamentar para nacionalizar.
Ou lembre-se o deprimente episódio de na lista das empresas a quem o Estado deve dinheiro só três terem decidido figurar – as outras, que são milhares, receiam represálias. E até Belmiro de Azevedo, um dos poucos empresários independentes portugueses, diz que começa a ser difícil discordar do Estado, “porque somos logo acusados de desalinhamento”...
Uma última nota: se queremos limitar os efeitos perversos da intervenção estatal decorrente desta crise, bem como eventuais exageros de regulação, há que afastar dogmatismos ideológicos. O ponto foi explicado por João Cardoso Rosas no Diário Económico do passado dia 30 de Outubro. Criticando o modo como alguns neo-liberais conservadores têm reagido à crise, escreveu J. C. Rosas que, “em vez de admitirem ter errado, eles têm-se esforçado por construir argumentos ad hoc para salvar a sua ideologia do confronto com a realidade”. Talvez, acrescento eu, porque muitos neo-cons vêm da extrema-esquerda e a conversão à direita não eliminou o dogmatismo ideológico que formou a sua mentalidade. Agora de sinal contrário, mas igualmente dogmatismo. Haja bom senso.
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista