sexta-feira

Pensamento Europeu - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso.
PENSAMENTO EUROPEU
António Vitorino Jurista
Nos dias que correm o tema da crise financeira internacional é incontornável numa crónica de jornal. A dificuldade de escrever sobre a crise é que o tempo que separa o acto da escrita e o momento da sua publicação desactualiza muito do que se pode dizer.
Um dia a chanceler alemã critica as opções do Governo irlandês ao adoptar um plano de sustentação das suas instituições bancárias e, ao mesmo tempo, defende que não deve haver um plano conjunto europeu. Ponto em que recebeu o apoio do primeiro-ministro britânico. Dois dias depois é a mesma chanceler alemã que sai em socorro de um importante banco hipotecário teutónico e oferece uma garantia ilimitada aos depositantes alemães. No dia seguinte o primeiro-ministro britânico adopta o "seu" próprio plano (tendo antes criticado severamente o plano irlandês) mas, provavelmente mais consciente do "efeito de ricochete" destas medidas nacionais, vem apelar a uma efectiva concertação europeia. Até parece que as declarações contraditórias dos responsáveis políticos tentam concorrer com o ritmo vertiginoso da queda das bolsas.
Como se vê, escrever sobre a crise só pode ser um exercício de alto risco.
De sólido apenas se pode dizer que estes episódios e o seu escasso impacto na (re)criação da confiança quer nos mercados bolsistas quer sobretudo no mercado de empréstimo interbancário demonstram que os responsáveis políticos ainda não conseguiram fazer passar a mensagem de que existe um rumo para limitar as perdas irreversíveis no imediato e para lançar as bases se uma profunda reformulação do funcionamento do sistema financeiro internacional.
Neste particular, a cacofonia europeia é preocupante e, essa sim, a persistir pode trazer graves consequências não apenas para as nossas economias mas também para o próprio projecto europeu no seu conjunto.
Por isso decidi que hoje não escreveria sobre a crise internacional.
Mas o sentimento de vazio da instância europeia é de chumbo. Ele traduz-se nas decisões minimalistas dos quatro países europeus do G8 reunidos em Paris no sábado e no limitado acordo a que se chegou no Ecofin sobre as garantias dos depósitos nos bancos europeus (para além da falta de acordo sobre a regulação da actividade seguradora, que até agora não tem figurado nas primeiras páginas dos jornais...).
Ora, em tempos dominados pelas questões económicas, parece não haver espaço para pensar na Europa fora deste tema dominante e dominador. Mas talvez o problema seja mesmo esse, ou seja, ao não pensar a Europa fora dos confins da integração económica priva-se o projecto europeu da capacidade de também responder às crises como a que presentemente vivemos.
Quis o acaso que coincidisse no tempo com esta crise a realização em Lisboa de um seminário organizado pelo Centro Nacional de Cultura dedicado ao pensamento de Eduardo Lourenço. Tenho para mim que foi uma feliz coincidência.
Eduardo Lourenço é, por todas as razões que jorram abundantemente da sua obra de pensador, ensaísta e filósofo, merecedor mais do que ninguém desta homenagem que é simultaneamente uma demonstração da enorme vitalidade do seu pensamento. Distinguir desta forma as suas reflexões sobre Portugal e a nossa identidade colectiva é pois, acima de tudo, um dever cívico de portugueses agradecidos pelo muito que nos tem dado para nos conhecermos melhor como povo e como nação. Mas se alguém em Portugal tem continuadamente reflectido e provocado a reflexão sobre o lugar da Europa no nosso imaginário colectivo de portugueses em especial, mas de todos os europeus em geral, esse é sem dúvida Eduardo Lourenço.
Ora as questões cruciais que Eduardo Lourenço tem colocado sobre as raízes históricas do projecto europeu, sobre o sentido do devir colectivo do continente e sobre os desafios que a integração europeia enfrenta são reflexões a que a actual crise que vivemos confere ainda maior acuidade e premência. Assim, se meditarmos mais atentamente sobre o pensamento europeu de Eduardo Lourenço decerto acabaremos por compreender melhor as agruras do momento que atravessamos. Mesmo que nada saibamos sobre o subprime, os colaterais ou o mercado de futuros...
Obs: Estamos diante de mais uma pérola reflexiva de António Vitorino que, coadjuvado pelo fértil e fecundo pensamento nacional e europeu da imensa Obra de Eduardo Lourenço, mais pensador, filósofo e ensaísta (do que poeta) - chega a conclusões que são tão desafiantes quanto preocupantes.
Estas derivam da velocidade com que aquilo que o decisor político pensa ou diz é vencido pelos factos e pelas circunstâncias, sempre mais impositivos, instáveis, caprichosos e velozes do que a formulação política que os agentes políticos para eles encontram a cada momento desta conjuntura errática, contingente e tríbula em que temos de viver.
Desafiantes porque quando hoje olhamos para a Europa - a sua liderança e a presidência em curso (a cargo do excêntrico Sarkosy) - procuramos ver que tipo de regulação para os mercados financeiros ou do comércio internacional e não vemos nada; quando procuramos ver que resolução de conflitos políticos e militares e qual o peso específico dos mecanismos multilaterais no actual balance of power global, não vemos nada; quando procuramos ver que instrumentos de global governance vão emergir na Europa de Barroso para responder aos problemas globais como o desequilíbrio ambiental, não vemos nada; quando procuramos ver que esforços globais vão emergir para combater a pobreza ou as doenças - só vemos Durão barroso a acartar a tal saca de farinha sob os olhos da CNN para aparecer na televisão global, etc, etc, etc...
Até apetece dizer a Os Contemporâneos para fazerem mais um sukete sobre as lideranças da Europa e concluir pela fórmula: Vai trabalhar ó... Tu queres é aparecer!!!
Procuramos vislumbrar algo nos discursos globalizantes e globalizadores de Durão e só vemos a impotência da Europa, que está de rastos e nenhuma influência hoje tem no mundo nem na formação dos cenários de poder e de competitividade global que era suposto existirem.
Mais: quando hoje nos perguntamos pelo alcance das políticas externas europeias (externa, de defesa, ambiente, de cooperação, cultura) só vemos a saca de farinha no Darfur acartada por Durão Barroso - como se fosse um estivador da Rocha de Conde d´Óbidos a fazer pela vida.
Quando hoje procuramos vislumbrar que prioridades serão atribuídas à qualidade de vida dos europeus e à sua sustentabilidade, só vemos Durão Barroso todo sujo pelo pó da tal saca de farinha.
Quando procuramos pelas tais "eficazes" políticas para a coesão económica e social da Europa - voltamos a encontrar um Sarkosy cambaleante e um Barroso repleto de pó branco da tal saca de farinha do Darfur. Eis o legado da Europa que hoje temos e que um dia teremos de recordar aos nossos filhos e netos, que contrasta gravemente com a década de ouro europeia de Jacques Delors, H. Kohl, Tactcher e outros grandes líderes europeus que fizeram da Europa aquilo que hoje ela não é.
Procuramos ver um sinal de futuro, uma luz de esperança e só vemos esses valores na capacidade de pensar e reflectir na imensa Obra de Eduardo Lourenço que aqui hoje António Vitorino teve a lucidez de saber recordar, à falta de acção política dos pífios líderes europeus que hoje pontificam numa Europa sem estatuto, sem papel, sem narrativa, 100-nada - que continua a andar à deriva.
Digamos que a Europa de Barroso continua a andar por aí, como o "outro", resta-nos, pois, o carácter prolixo do pensamento de Eduardo Lourenço e análise de António Vitorino que a soube compôr, recordar e arrumar.
PS: Eduardo Lourenço, mais do que ninguém, e por razões óbvias, merecia e devia receber as Chaves da Cidade de Lisboa. Aqui fica a ideia em jeito de repto. O pensador não nasceu na capital, mas tem sabido promover um pensamento - português e europeu - coerentes na Europa e no mundo - engrandecendo-nos a todos. Como já tem 85 anos - e a vida não espera, seria bom que se pensasse nisso.