domingo

A DEMOCRACIA EM TRANSFORMAÇÃO - por Manuel Maria Carrilho -

GAMMA/ULF ANDERSENL'historien et professeur au Collège de France, Pierre Rosanvallon, préside le cercle de réflexion "La République des idées".
Confesso que apreciei a trad. que o prof. Maria Carrilho aqui nos deixa do pensamento de Pierre Rosanvallon. O sublinhado é nosso.
DEMOCRACIA EM TRANSFORMAÇÃO, in dn Manuel Maria Carrilho
Há dois anos, com a obra La Contre-Démocratie, Pierre Rosanvallon veio não só chamar a nossa atenção para a erosão que hoje mina a confiança nos representantes eleitos, mas também mostrar que é um erro deduzir dessa erosão uma generalizada passividade dos cidadãos. Pelo contrário, a sua tese ia no sentido de valorizar os comportamentos políticos que definiam uma sociedade "de desconfiança": os comportamentos de vigilância, os procedimentos de bloqueio e as práticas de julgamento, através das quais a sociedade exerce múltiplas formas de contra-poder.

A ideia central da contra-democracia é que, ao lado do povo-eleitor, as últimas décadas viram emergir um pouco por todo o lado outras declinações da vontade popular: a do povo-vigilante, a do povo-veto e a do povo-juiz. Declinações que, contudo, vão a par com a possibilidade de renascimento do populismo e com a intensificação da rejeição da política, conduzindo assim ao paradoxo de uma "democracia impolítica". Por isso, como há cerca de um ano Pierre Rosanvallon afirmou em Lisboa (onde veio apresentar as suas ideias num debate organizado pelo Grupo Parlamentar do PS), o grande problema contemporâneo surge com a estranha simultaneidade do aumento da revindicação democrática com o generalizado declínio da política.

É justamente a este problema que ele regressa agora com o seu novo livro, La Legitimité Démocratique. Que começa por retomar a análise do descentramento das democracias, fenómeno histórico que se traduz numa persistente desvalorização do voto no conjunto dos comportamentos que caracterizam a democracia contemporânea.

Desvalorização que Rosanvallon liga agora a um ponto preciso: o enfraquecimento da identificação da maioria com a vontade geral, como se o maior número de votos pudesse valer, sem problemas ou atritos, pela totalidade da nação. O que aqui é importante compreender, é que a democracia tradicional se institucionalizou a partir de uma dupla ficção: primeiro, a de que a parte vale pelo todo. E, depois, a de que o momento eleitoral vale para toda a duração do mandato.

Ora, foi esta dupla ficção que entretanto se fragilizou enormemente, sobretudo porque, ao mesmo tempo, a própria noção de maioria perdeu, em termos sociológicos, consistência: «A eleição passa a ter uma função mais limitada, ela apenas valida um modo de designação dos governantes. Ela deixa de implicar uma legitimação a priori das políticas que são seguidas."

O povo, como Rosanvallon sublinha, já não se apreende hoje em bloco, como uma unidade. E as sociedades contemporâneas compreendem-se a si próprias cada vez mais a partir da noção de minoria, a ponto de se poder afirmar que "povo se tornou no plural de minoria". Se assim é, não só a democracia representativa vai ser sujeita a uma cada vez mais intensa pressão participativa (primárias, referendos, júris de cidadãos, sondagens deliberativas, etc.), como vai tornar-se necessário repensar a democracia a partir das suas instituições de interesse geral, colocando a questão da qualidade da democracia no centro do debate.

É neste ponto que a noção tradicional de uma legitimidade absoluta decorrente do voto se revela mais frágil, tornando-se imperioso alargar a noção de legitimidade, abrindo-se a outras dimensões. Rosanvallon destaca três: a imparcialidade, a reflexividade e a proximidade. A primeira incarna-se na criação de autoridades independentes. A segunda é assegurada pelos tribunais constitucionais, mas também por movimentos sociais, instituições académicas, etc. E a terceira aponta para uma relação de confiança, feita de presença e de compaixão, com que o poder procura responder às múltiplas exigências de reconhecimento por parte dos cidadãos.

A política, contrariamente às profecias de Tocqueville, não se simplificou com o advento da democracia: pelo contrário, ela complexificou-se extraordinariamente. E só a compreensão das várias legitimidades que - tantas vezes conflitualmente - a animam permitirá, segundo Pierre Rosanvallon, revitalizá-la no sentido de uma democracia que ambicione ser, não só mais exigente, contrariando as manobras de propaganda e as tácticas de manipulação, mas também mais interactiva, nas formas do exercício da responsabilidade e nas modalidades de deliberação.

Causas e consequências

É o argumentário da irresponsabilidade: durante muito tempo, procedeu-se como se "as coisas" não tivessem consequências. E, quando estas eclodiram, pretendeu-se que tudo aconteceu porque não se viram as respectivas causas. Por trás desta "ilusão retrospectiva da fatalidade", como diria Bergson, esconde-se há muito o grau zero da política.

Porque a verdade é que se conheciam tão bem as consequências, como hoje se conhecem as causas. E foram muitos os que as apontaram: J. Stiglitz, E. Todd, G. Soros, J. Peyrelevade, J. K. Galbraith, etc. E também Paul Krugman, que acaba de ser galardoado com o Prémio Nobel da Economia.

O problema, é que quando a ilusão é grande, nenhuma razão consegue ser maior. Por isso, os dirigentes da União Europeia continuam, apesar dos esforços da última semana, incapazes de encontrar respostas eficazes para contrariar a crise que, durante mais de um ano, tão infantilmente pretenderam ignorar.

Para já, estamos apenas no controlo de danos. E do "plano" europeu ao "governo" europeu, vai um caminho que, surpreendentemente, ninguém parece querer fazer. Os líderes europeus fariam bem em reflectir seriamente nas palavras do novo Nobel da Economia, que há dias chamou a atenção, não só para a "inevitável, generalizada e prolongada recessão" que se anuncia, mas também para a dramática falta de crédito que atinge todos aqueles que estimularam a irresponsável cegueira dos últimos tempos.