quarta-feira

O ARGUMENTO DA HONRA - por Baptista Bastos -

O ARGUMENTO DA HONRA Baptista-Bastos
Escritor e jornalista
A ética republicana iluminava as virtudes do carácter e a grandeza dos princípios. As revoluções, idealmente, não são, apenas, alterações económicas e substituições de regimes. Transportam a ideia feliz de modificar as mentalidades. Essa mistura de sonho e ingenuidade nunca se resolveu. A esperança no nascimento do "homem novo" não é exclusiva dos bolcheviques. O homem das revoluções jamais abandonou o ideal de alterar o curso da História e de modelar os seus semelhantes à imagem estremecida das suas aspirações.
É uma ambição desmedida? Melhor do que ninguém, respondeu Sebastião da Gama: "Pelo sonho é que vamos/comovidos e mudos./Chegamos? Não chegamos?/Partimos. Vamos. Somos." A ética republicana combatia a sociedade do dinheiro, da superstição religiosa, da submissão, e pedia aos cidadãos que fossem instrumentos de liberdade. As "raízes vivas", de que falou Basílio Teles.
Fomos perdendo, sem sobressalto nem indignação, a matriz ética da República. De vez em quando, releio as páginas que narram os desassossegados dezasseis anos que durou o novo regime, obstinadamente defendido por muitos a quem se impunha a consciência do compromisso. Esses, entre o aplauso e o assobio, percorreram o caminho que vai do silêncio à perseguição, do exílio ao assassínio político. Morreram pobres. São os heróis de uma história que se dissipou, porque o fascismo impediu nos fosse contada, nas exactas dimensões das suas luzes e das suas sombras.
Relembrei estes episódios ao tomar conhecimento, pelo semanário Sol, de que Ramalho Eanes prescindira dos retroactivos a que tinha direito, relativos à reforma como general, nunca por ele recebidos. A importância ascende a um milhão e trezentos mil euros. É um assunto cujos contornos conformam uma pequena vindicta política. Em 1984, foi criada uma lei "impedindo que o vencimento de um presidente da República fosse acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência que aufiram do Estado." O chefe do Governo era Soares; o chefe do Estado, Ramalho Eanes, que, naturalmente, promulgou a lei.
O absurdo era escandaloso. Qualquer outro funcionário poderia somar reformas. Menos Eanes. Catorze anos depois, a discrepância foi corrigida. Propuseram ao ex- -presidente o recebimento dos retroactivos. Recusou. Eu não esperaria outra coisa deste homem, cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum. Ele reabilita a tradição de integridade de que, geralmente, a I República foi exemplo. Num país onde certas pensões de reforma são pornográficas, e os vencimentos de gestores" atingem o grau da afronta; onde súbitos enriquecimentos configuram uma afronta e a ganância criou o seu próprio vocabulário - a recusa de Eanes orgulha aqueles que ainda acreditam no argumento da honra.
Obs: Felicite-se o Gen. Eanes pelo gesto nobre de desprendimento que revelou ter, especialmente num tempo de gula materialista e hiper-consumista em que para quase todos o dinheiro é tudo. Mas pergunto-me se esse gesto não poderia ter uma interpretação e consequente aplicação na realização de uma qualquer obra de carácter social, enobrecendo o próprio ideal republicano - como, por ex., o Instituto de Apoio à criança (ou outro) que a esposa de Eanes - tão bem soube interpretar na sociedade portuguesa no início da década de 80 do séc. XX.
O que se poderia fazer, meu Deus, no plano da educação (ou no combate à pobreza...) com esse milhão de euros...
Eu, no caso de Eanes teria recebido esse dinheiro a que tivesse direito, mas com o compromisso público de realizar obra social. Seria também uma forma nobre de evocar e de valorizar o ideal Republicano - que dentre de um ano e meio - comemorará o seu centenário.
Assim, o sr. Gen. Eanes - dá ao País uma postura de nobreza, rara entre nós, de efeito simbólico, mas vazia de conteúdo e alcance social - que a circunstância e os tempos exigiriam daquele que foi o Chefe de Estado num período conturbado do nosso regime democrático.
Portugal, hoje, mais do que atitudes "quixotescas", carece de visão social, de empreendedorismo no capital-social procurando valorizar os mais desfavorecidos, que por um azar da vida, da família ou do destino nascem pobres e morrerão pobres e iletrados.
Esses jamais poderão dizer que recusaram algo, porque nunca o País lhes proporcionou uma saída, uma escapatória, uma compensação (ainda que com efeitos retroactivos) - para se furtarem ao miserável destino de vida a que a circunstância terrível do tempo os votou.
Razão por que creio que a reacção do sr. Gen. Eanes, ainda que nobre, revela mágoa e algum ressentimento pela forma como as coisas, a seu tempo, foram jurídicamente fixadas.
Razão pela qual relativiso aqui quer a prosa bem feita do escritor, que adora este tipo de quixotismo, e que é próprio de toda uma geração, quer a atitude nobre, ainda que socialmente inconsequente, do sr. Gen. Ramalho Eanes - que muito fez pela estabilização do regime político democrático em Portugal.
O País hoje precisa de fazer estes balanços sociais e morais para estar de bem consigo, e, ao mesmo tempo, dar também um sinal para o futuro: há mais vidinha para além duma reforma choruda, mas com o bolôr dos tempos, porque com efeito retroactivo...