segunda-feira

Mudar de vida - por Francisco Sarsfield Cabral -

Mudar de vida , in Público
Mais de dois terços dos portugueses têm dificuldade em pagar as contas no fim do mês - pior, na UE, só a Bulgária. O rendimento disponível de muitas famílias baixa com o fraco crescimento da economia e dos salários, a alta dos preços, os impostos, o desemprego e sobretudo o endividamento - que subiu, em parte, para manter certos níveis de consumo, apesar da quebra dos rendimentos familiares.
O nosso endividamento médio equivale hoje a 130% do rendimento familiar disponível (20% em 1990), valor apenas superado na UE pela Holanda. Mas os holandeses têm sobretudo créditos a taxa fixa, enquanto quase todos os nossos são a taxa variável, aumentando os encargos com a subida dos juros.
Assim, não admira que a taxa de poupança das famílias portuguesas esteja no ponto mais baixo da última década. Até porque, além do aperto financeiro, há outros factores que induzem a poupar menos.
Por um lado, com a universalização da previdência instalou-se na sociedade portuguesa a ideia de que o Estado trata da nossa saúde e da nossa reforma. Desvaneceu-se antigo instinto de pôr algum dinheiro de lado para os imprevistos da vida, mesmo quando quem assim poupava tinha fracos rendimentos. E muitos ainda não repararam que aquela antiga atitude tem de voltar, pois a situação financeira do Estado e da Segurança Social limitará cada vez mais os apoios. Há mais gente a fazer Planos de Poupança Reforma, mas não chega.
Por outro lado, os incentivos à poupança são escassos entre nós. Os certificados de aforro pagam menos desde Janeiro, levando a que no primeiro semestre 25 mil aforradores os abandonassem; 1,23 mil milhões de euros foram levantados, entrando apenas 764 milhões, tendência que se agravou em Julho. As contas poupança-habitação ficaram sem incentivos fiscais. Este ano os fundos de investimento perderem 23% dos activos. Com a bolsa em derrocada e o imobiliário em crise, restam alguns depósitos a prazo para as poupanças não serem comidas pela inflação. É curto.
Numa altura em que a protecção social pública – na saúde, nas pensões, etc. – se torna menos generosa por causa do envelhecimento da população e do fraco crescimento económico, a quebra na poupança das famílias é preocupante. A ilusão de que o Estado tomará conta de nós nas dificuldades poderá sair cara, no desemprego, na doença e na velhice.
Hoje, a maioria das famílias portuguesas apenas poderá poupar um pouco mais se cortar no consumo, que já está a abrandar fortemente. Mas só haverá mais poupança se os cortes forem maiores, o que implica alterar padrões de vida. Por outras palavras, muita gente tem de diminuir ainda mais o consumo.
Eu sei como é às vezes hipócrita a crítica ao consumismo – os críticos vivem bem, mas não querem o mesmo para os outros, até porque isso os pode prejudicar. Por exemplo, quem possui automóvel há décadas lamenta que tanta gente disponha hoje de carro, engarrafando o trânsito e o estacionamento.
Também compreendo que quem tenha um passado, pessoal ou familiar, de pobreza pretenda afastar essa memória, agarrando-se a símbolos de prosperidade e de status social, como o automóvel ou férias no estrangeiro. E as necessidades evoluem com a habituação a novas comodidades – há trinta anos os carros não tinham ar condicionado, hoje raros o dispensam.
Mas uma certa moderação no consumo e uma maior preocupação em evitar gastos são indispensáveis. Isso significa, por exemplo, planear com mais cuidado as finanças familiares, não pensando apenas no presente. E perceber a irracionalidade (pesando custos e benefícios) de procurar ter sempre o último e mais sofisticado telemóvel, para uso intensivo de duvidosa utilidade. Ou multiplicar o número de carros por família. Ou, ainda, ir a restaurantes quando tal não é necessário. Estes exemplos correspondem a áreas onde, em média, os gastos dos portugueses são superiores aos de muitos outros europeus, bem mais ricos.
A moderação no consumo poderá ser deliberada, permitindo a poupança. Ou será imposta pela realidade económica: a certa altura, o crédito acaba. Daí pode resultar uma tragédia não só pessoal, mas também colectiva, caso feche a torneira do crédito estrangeiro que alimenta os nosso bancos.
Mais vale, então, as pessoas gastarem com maior racionalidade. Ainda que tal implique, em alguma medida, mudar de vida. Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Obs: A ausência de poupança é grave, mas quando ela é acompanhada de falta de investimento e empreendedorismo a situação densifica-se. Como poupar com elevado consumo, desemprego europeu considerável e uma conjuntura intenacional instável e muito dependente das flutuações do preços do petróleo?!