segunda-feira

Quando o talento se "casa" com a mediocridade o resultado é a falha de carácter...

Acerca do Homem: será o talento incompatível com o carácter!?

Já tratámos esta questão no passado. Mas ela ganha acuidade, sobretudo quando vemos - apesar de essa não ser a regra - pessoas com algum valor evidenciar a expertise do seu trabalho na sua esfera de competência socio-profissional. Na economia, na academia, no desporto, na arquitectura, na engenharia, na política, no futebol (considerado desporto-rei) e até, pasme-se, na própria blogosfera - por onde perpassam hoje dezenas de milhar de análises interessantes.
Mas se já não é difícil identificar rapidamente meia dúzia de actores que correspondam ao perfil talentoso daqueles valores e áreas de competência, já se torna mais complexo identificar - numa só pessoa - talento com carácter, ou seja, elevada intensidade de inteligência e saber-fazer com aquilo que se denomima um bom carácter. Um homem com qualidades pessoais e humanas, que seja incapaz de invejar o vizinho por este ter comprado uma casa maior, um carro melhor, ou dizer mal de um colega pelo facto de ele ter arranjando um novo emprego e, com isso, tenha melhorado a sua vida. Aqui é que as coisas se complicam e a personalidade das pessoas, de algumas pessoas, triste e lamentavelmente, se revela. Para o pior, certamente!!
É um facto, a personalidade humana, por vezes, é um local de convivência de muitas e estranhas entidades, ninguém é linear e o “nosso amigo”, ou seja, aquele que comeu à nossa mesa, que entrou na nossa biblioteca, conheceu a nossa família, que mexeu nos nossos livros - por vezes não sabe honrar a conduta que era suposto ser nobre, leal e amiga. É aqui que o talento se qustiona, porque um homem quando é superior - tem de o ser de forma total, íntegra - e não de forma fragmentária, passageira, obsessiva com um determinado projecto - investindo até a sua própria vida numa tarefa, por vezes com prejuízo para o bem público que era suposto servir.
Decorre isto da simples constatação de que não basta encontrar-se algum talento em A, B, C ou D - aliado a esse talento (por vezes obsessivo, especialmente quando não se faz mais nada na vida - e se converte a vida numa luta através dessa obsessão) e identificar essa pessoa como superiormente inteligente. Não raro, e aqui a experiência de cada um será variável, encontramos personalidades complexas, conflituosas mesmo, não raro (mentalmente) desequlibradas que se afundam em outras tantas personalidades: mesquinhas, invejosas, raivosas, dissimuladas, matreiras, perversas e não hesitando em sabotar aquilo que invejam naquele que, por alguma razão ou motivação, invejam. É aqui que o alegado talento se afunda na patente perversidade e até maldade que dinamiza o carácter de certos homens.
Daí que o enunciado inicial não seja possível conciliar-se: o talento da inteligência e de alguma expertise pode sossobrar ante o peso da maldade humana - motorizada por alguns dos sete pecados capitais que consomem o homem, se este não tiver defesas (criadas na educação, na cultura, na magnanimidade) e na boa e sã convivência entre os homens.
Daqui irrompe a vergonha, a recriminação ou então, se o homem ainda for pior do que o julgamos, o rancor, o ressentimento mais um punhado de defeitos que fazem de A ou B um verdadeiro "monstrinho", ainda que a comunidade que o vê, conhece - pessoal ou virtualmente - o julgue o ser superior: seja no talento e na bondade. Infelizmente, não o é.
Pois também aqui os sentidos nos enganam, e se nos enganam algumas vezes - podem enganar-nos muitas outras, ou quase sempre. Quem já leu Descartes, Kant e outros pensadores maiores - esses sim - verdadeiramente talentosos (mas não isentos de defeitos, certamente!!) sabe que assim é. Daí a necessidade da intervenção do entendimento, da razão e numa esfera superior da ética e da moral - para ajuizar certas pessoas que, à partida, podem ser - erróneamente - tidas como pessoas de índole superior. E não o são.
Significa isto que o homem, certos homens, alguns têm algum talento, algum mérito, algum dom - seja ele qual for. Mas só muito raramente coabitam nessas mesmas pessoas similares qualidades e/ou virtudes éticas, morais, humanas. Em bom português, isto significa que se pode ser talentoso e, ao mesmo tempo, um homem sem qualidades (já ia para dizer "sacana"...), um tipo - como se diz na gíria - "mal formado", um "tipo sem carácter". O mesmo ser cabotino que inveja o vizinho do lado por causa da casa, do carro, das férias, do emprego, do aspecto físico e até da mulher ou mulheres que aquele teve, tem ou vai ter.
É neste particular que fazemos um juízo fatal como o destino: aquele a quem consideramos alguma expertise naquilo que faz ou possa vir a fazer, é o mesmo homem que concentra em si o pior dos defeitos da condição humana nas demais dimensões éticas e morais da vida. É aquilo a que alguns teóricos do estudo do homem designam por "inteligência perversa" - dado que se, por um lado, geram alguma admiração na comunidade que o conhece (física ou virtualmente) - por outro, incorrem em comportamentos e atitudes que são lamentáveis, execráveis mesmo e que nos surpreendem por razões - que acabam até por cilindrar aquele talento inicial que lhes reconhecíamos.
Aqui chegados, dizemos: "este gajo não presta para meu amigo". É um homem sem qualidades... Quantos de nós não afirmámos já isto para connosco próprios ao longo da vida!!?? E até aquelas valências que admitíamos com alguma sagesse nos sabem agora ao vómito mais pérfido que a conduta humana pode debitar, seja em condições normais, seja em condições ou situações-limite.
Quantas vezes temos nós de lidar com isto nas nossas vidas: nas relações pessoais, sociais, profissionais, institucionais e outras que tais. Olhando para esses monstrinhos post-modernos, doravante, como uma espécie de pirilampos ou homens-intermitentes - que vão revelando o seu talento sempre que piscam, mas depois sobrevem o escuro da sua verdadeira personalidade.
Eis o retrato do homem sem qualidade: alguém com algum talento para fazer algo, mas, ao mesmo tempo, um ser ambíguo, capaz do pior logo de seguida. Uma espécie de homem polar que revela uma relação traumática entre a sua essência (Wesen) e a sua existência (Dasein). Ou porque se desgosta, ou porque é um frustrado profissionalmente, ou porque não é aceite na sociedade como desejaria ser, tudo isso faz do homem sem qualidade um ser desatinado, rancoroso, vingativo, enfim, mau.
Será isto um resultado da sociedade ou um subproduto de cada um de nós, das nossas próprias condições de vida e existência?!
Com isto não pretendemos ser moralistas, pegando no título da obra maior de Robert Musil - Um homem sem qualidades - achámos interessante dar uma pincelada no estilo de vida urbana que muitos de nós hoje leva, e de que quer a realidade quer a virtualidade - nem sempre são boas e saudáveis escolas de pensamento e acção. Porque por aí perpassam grande parte daqueles defeitos, rancores, invejas, abismos - que hoje se multiplicam no mercado das opiniões e das relações, e tranformam o homem num ser ainda mais desatinado.
Confesso, e isto será certamente um defeito ou incapacidade, que quando me falam desses talentos e me comparo a essas vedetas "reais-virtuais" (porque a tendência natural é a da comparabilidade, ainda que por capricho não o admitamos) mais gosto de ser como sou, e até gosto gosto mais do meu cão...
Há talentos que quando comparados com os defeitos no mesmo ser - aqueles ficam completamente esmagados ante a barbárie de alguns pecados capitais que consomem algumas vedetas da nossa realidade-virtual.
E por vezes nem sequer é necessário fazer uma narrativa em 5 linhas para desmontar esses talentos-de-barro, ou tigrinhos-de-papel. Basta conhecer e identificar as suas próprias acções, algumas por serem tão mesquinhas e perversas acabam por dar-nos a "fotografia e o filme" do desastre e do seu autor.
O desastre que bastou para Robert Musil ver aí um belo título para um livro.
PS: Dedicamos esta simples reflexão acerca do homem contemporâneo a Robert Musil e ao autor do Memórias Futuras. Aquele não tive a honra de conhecer, mas este tenho-o como homem sábio, discreto, experiente e ponderado nas avaliações que faz. Quer em relação aos fenómenos sociais - muitos dos quais vividos por dentro e até em situações de direcção na 1ª pessoa - quer em relação às pessoas e aos pequenos players virtuais que vão pululando por aí, presumindo que são pequenos deuses, quando, afinal, não passam de homens alienados que um dia se apaixonaram pelo seu próprio reflexo. São os narcisos virtuais do nosso tempo.

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Joe Dassin