Os limites do mercado - por Francisco Sarsfield Cabral -
Os limites do mercado, in Público
A crise do crédito já leva um ano e ninguém sabe quando e como irá acabar. Os mais recentes buracos financeiros envolvem duas grandes empresas, Fannie Mae e Freddie Mac, criadas para darem solidez ao mercado hipotecário americano. Agora são elas próprias o problema.
A falta de confiança que prevalece nos mercados financeiros já levou a várias intervenções estatais. E haverá ainda outras, para evitar danos maiores na economia. Não é reconfortante para quem esperava que o mercado, por si só, tudo resolvesse.
As intervenções vão desde injecções de liquidez dos bancos centrais (dando crédito a instituições financeiras privadas) até ao salvamento de empresas bancárias – numa estimativa optimista, só a operação para salvar a Fannie e o Freddie custará 25 mil milhões de dólares ao contribuinte americano -, passando por ajudas estatais ao mercado imobiliário dos EUA e às famílias que ficaram sem casa.
E a Reserva Federal, banco central dos EUA, nas suas injecções de liquidez já não ajuda apenas bancos comerciais, como era habitual. Passou a apoiar, também, bancos de investimento e até a Fannie e o Freddie.
Esta crise põe termo ao ciclo de euforia pró-mercado iniciado com o colapso do comunismo, no tempo de Reagan e Thatcher. Tal como a depressão dos anos 30, a actual crise não significa o fim do capitalismo. Mas, tal como aconteceu há 70 anos, alguma coisa mudará.
Nos EUA uma regulação financeira mais eficaz tentará travar imprudências na concessão de crédito, bem como a irresponsabilidade na utilização de novos e sofisticados produtos financeiros. Imprudência e irresponsabilidade que caracterizaram as duas últimas décadas. Até existe o risco de se ir longe demais no combate ao laxismo financeiro, entravando o normal funcionamento do mercado. Foi o que aconteceu na América com a exagerada reacção legislativa às fraudes empresariais (como a da Enron).
Os EUA estão no centro do furacão não só porque são os campeões do mercado livre como porque vão à frente na invenção de novos produtos financeiros. As regras e, sobretudo, as práticas nos mercados financeiros europeus têm-se mantido bem mais prudentes do que nos EUA.
Por isso os americanos têm agora algo a aprender com os europeus no plano financeiro. E não só nessa área. Ao contrário da ideia corrente de que o Estado providência é coisa do passado, ele irá afirmar-se mais na América, onde a sua presença é reduzida.
Decerto que o Estado providência está em crise financeira na Europa, por causa do envelhecimento da população, agora quase toda abrangida pela segurança social, e do fraco crescimento económico. Mas não vai desaparecer – apenas se tornará menos generoso, como já acontece, incluindo em Portugal.
Na América, onde a protecção social é inferior à europeia, a tendência é para a reforçar. Por razões políticas, aliás reflectidas nos programas de Obama e McCain. A classe média americana está revoltada porque os seus rendimentos têm progredido pouco, ao contrário do que acontece com os mais ricos. Há que lhe dar resposta.
Se essa estagnação de nível de vida for atribuída à globalização, às importações da China, às deslocalizações de empresas – então há o risco de os EUA se fecharem num proteccionismo populista e, afinal, contraproducente. Esperemos que seja percebido que as causas do alargamento do leque de rendimentos só em escala limitada têm a ver com a globalização. Ele decorre sobretudo de outros factores, que vão desde a importância crescente das novas tecnologias (que geram info-exclusão) até impostos que beneficiam os ricos em detrimento dos pobres, passando pelos efeitos de uma sociedade cada vez mais mediática, que favorece os famosos.
Assim, por exemplo, nos EUA irá avançar-se no sentido da universalização dos seguros de saúde. Ali os gastos em saúde (14% do PIB) são praticamente o dobro dos europeus (8%). Mas, na América, a comparticipação estatal é muito mais baixa, empurrando os americanos para caríssimos seguros privados e deixando mais de 40 milhões sem qualquer seguro de saúde, por falta de meios. Acresce que no sector dos seguros poderá rebentar, depois do subprime, uma nova crise financeira.
Mas como fazer reformas sociais, se os EUA atravessam uma crise económica? Bom, as reformas de Roosevelt com o New Deal concretizaram-se numa crise muito pior.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Medite-se nesta estimulante reflexão do Francisco e confie-se que a América liderada por Obama consiga criar um sistema de relações políticas, económicas e culturais com o mundo que nos faça a todos designar a actual globalização predatória por globalização feliz, de rosto humano, personalista, desenvolvimentista (fazendo com que a economia sirva o homem). Obama terá, doravante, um duplo desafio: pessoal e político, embora a ordem possa ser diversa... Serão os custos da origem, os quais se podem converter em vantagens. We shall see...
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