As tentações do êxito - por Francisco Sarsfield Cabral -
As tentações do êxito, in Público, 7.04.08
Desde que o Governo anunciou um défice orçamental de 2,6 % do PIB em 2007 e resolveu descer um ponto no IVA, o debate público deu mais atenção à descida do imposto do que à redução do défice. Como de costume, privilegiou-se o imediato e acessório face ao longo prazo e ao essencial.
Sem desvalorizar os riscos da descida do IVA, o essencial está em que, pela primeira vez na história da democracia portuguesa (e não apenas desde o 25 de Abril), estamos a caminho de pôr ordem nas contas públicas. Há 80 anos, Salazar iniciou esse caminho e teve sucesso – mas à custa da liberdade.
Em dois anos o défice baixou de 6,1 % do PIB para 2,6 %, uma descida mais rápida do que a prevista pelo próprio Governo. Algo inédito na União Europeia e considerado até há pouco impossível por muitos analistas. Outra novidade: tivemos em 2007 um saldo primário positivo, isto é, excluindo juros da dívida pública. E esta desceu mais de um ponto percentual no ano passado em relação ao PIB, o que não é irrelevante, tendo em conta o encarecimento do crédito.
O aumento da receita fiscal foi importante para este resultado. Mas não teve o papel exclusivo que se lhe atribui. Entre 2005 e 2007 a receita subiu um ponto e meio de percentagem em relação ao PIB; a despesa diminuiu dois pontos.
Nem assim o problema do défice orçamental está ultrapassado, ao contrário do que afirmou o primeiro-ministro na véspera de anunciar a baixa no IVA. Apenas o estará quando tivermos um excedente, como acontece em Espanha. Só isso permitirá políticas anti-cíclicas: aumentar despesas públicas e reduzir impostos em tempo de vacas magras.
Ora será difícil a redução continuada da despesa, o cerne de uma verdadeira consolidação das contas do Estado. No PÚBLICO de 28 de Março Graça Franco apontou vários obstáculos. Não se repetirão em ano de eleições cortes de despesa ligados ao congelamento de carreiras e salários (que permitiram reduzir os gastos com salários da função pública de 14,4 % do PIB em 2005 para 12,9 % em 2007). Muitos funcionários estão a reformar-se – mas as pensões terão de ser pagas. E a travagem do investimento público (aliviada no ano passado, é certo) será desaconselhável se a situação internacional se agravar, afectando o crescimento da economia portuguesa.
Essa desaceleração, já sentida este ano (no investimento, sobretudo), também limitará a receita fiscal. E será irrealista contar, na mesma escala dos últimos anos, com novos êxitos na luta contra a fuga aos impostos.
Por tudo isso, é errada a mensagem de que os portugueses já não têm de se preocupar com o desequilíbrio das contas do Estado. Ainda há muito caminho a percorrer. O perigo está em que, com eleições à vista, se crie a sensação de que o tempo dos sacrifícios já acabou, tendo chegado a altura de gozar a vida.
Há dez anos Portugal conseguiu integrar o grupo fundador do euro, porque o défice orçamental não ultrapassou os 3 % do PIB. Mas essa vitória trouxe um clima de facilitismo que foi fatal. Ignorou-se, então, que o êxito orçamental tinha sido obtido, não pela contenção da despesa, mas à custa da quebra dos juros e do aumento da receita fiscal, estimulada pelo crescimento económico desse tempo. Quando este abrandou, voltou em força o desequilíbrio das contas públicas.
E, tal como há uma década, o problema não está só nas finanças do Estado. O clima de facilitismo traduziu-se então, também, numa euforia consumista sem sustentação na economia. Acontece que o crédito ao consumo está, agora, a subir entre nós ao ritmo anual de 15 %, quando se fala de cem mil famílias em aflitiva situação financeira por causa do endividamento e o crédito se torna cada vez mais caro. Dá que pensar.
É positivo que, ao ganhar um ano no programa de redução do défice, o Governo tenha fixado uma meta mais exigente para 2008: de 2,4 % do PIB passou para 2,2 %. É um sinal de responsabilidade.
Mas não tranquiliza inteiramente. O Governo já mudou tanta coisa nas suas políticas, agora com um “Sócrates de rosto humano”: na saúde, no aeroporto, no recrutamento de polícias e GNR, na maneira experimental e aberta a correcções como apresentou o novo mapa judicial... Amanhã, um eventual agudizar da crise internacional poderá servir de pretexto para o Governo abrir demais os cordões à bolsa, na receita e na despesa. Oxalá não aconteça.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Sugestão de destaques:
É errado já não termos de nos preocupar com as contas do Estado.
O clima de facilitismo gerado pela entrada de Portugal no euro, há uma década, pode agora repetir-se com o êxito na redução do défice orçamental.
Obs: Publique-se.
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