segunda-feira

As surpresas de Sócrates - por Francisco Sarsfield Cabral -

As surpresas de Sócrates [in Público, 15 de Out. 2007]
Há quem ache monótona a política portuguesa. Mas vale a pena reparar nalgumas mudanças que vieram animar a cena. Não estou a pensar, agora, nas virtualidades do PSD de Menezes para alimentar o circo mediático (a custo potencialmente elevado para todos nós, claro). Refiro-me à evolução do PS nos últimos três anos.
Antes de Sócrates conquistar a maioria absoluta em 2005, quem poderia prever que o partido que sempre combatera pela liberdade, contra ditaduras de direita e de esquerda, uma vez no poder iria conviver mal com as liberdades, desde a informativa à sindical? E quem acreditaria que, por acção e/ou omissão, um governo do PS fomentasse um clima de intimidação e de respeitinho pelo chefe? Recordem-se as críticas socialistas ao “autoritarismo” e à “arrogância” de Cavaco Silva primeiro-ministro e compare-se com o que agora se passa.
Segunda surpresa, esta positiva: depois de bramar contra a “obsessão do défice” de Manuela Ferreira Leite, chegado ao governo o PS assumiu como prioritário o saneamento das contas do Estado. Muito por mérito do ministro das Finanças, o executivo de Sócrates percebeu que reduzir o défice orçamental era indispensável para recuperar a confiança dos agentes económicos.
Na frente orçamental o Governo tem alcançado um apreciável sucesso, ultrapassando as suas próprias previsões (sem falar nas previsões catastrofistas da oposição). Tem razão Teixeira dos Santos quando desafia os seus críticos a mostrarem outros casos de consolidação orçamental que hajam conseguido diminuir, em dois anos, o défice de 6 para 3 por cento do PIB.
Decerto que este êxito tem limitações, sendo ainda incerto o seu futuro. Mas é algo que os seus detractores no plano partidário jamais conseguiram. E, com o novo líder do PSD a prometer tudo a toda a gente (incluindo aos prejudicados por algumas reformas deste Governo na segurança social e na saúde), podemos imaginar quanto treparia a despesa pública se ele mandasse.
A principal crítica ao actual processo de consolidação orçamental é a redução do défice ser feita sobretudo pelo aumento da receita fiscal e não tanto pela redução da despesa pública. E que a contenção desta deve muito à quebra do investimento do Estado. É também verdade que o atraso na reforma da Administração Pública travou a desejável baixa na despesa de pessoal. Mesmo assim, a despesa corrente do sector público (sem juros) desceu alguma coisa em percentagem do PIB nos últimos dois anos, algo não visto no passado.
Quanto ao papel da receita fiscal neste processo, é óbvio que tal via está a esgotar-se. E que um crescimento económico abaixo do previsto para o ano (2,2 por cento) porá em causa a prevista arrecadação de impostos. É positivo, no entanto, que o Governo tenha desistido de subir os impostos sobre os combustíveis.
O progresso no combate ao défice permitiu incluir na proposta de Orçamento para 2008 um programa para travar o escândalo dos atrasos nos pagamentos do Estado aos seus credores. Medida importante, mas pouco comentada. Finalmente parece encarar-se a sério esta fonte de desmoralização e de problemas de tesouraria para as empresas que é o nosso Estado caloteiro.
Reduzir o défice é necessário, mas não suficiente, para fazer crescer mais a economia. Com a subida dos juros, as famílias endividadas apertarão mais o cinto. Aí, a culpa é da falta de uma autêntica reforma na lei das rendas, que diminuísse o recurso ao crédito à habitação.
E não se esperem progressos rápidos na redução do desemprego. As expectativas optimistas criadas pelo próprio primeiro-ministro estão a ser desmentidas. Era inevitável. Como seria possível Portugal passar de uma economia com a competitividade assente na mão-de-obra barata (logo, em actividades trabalho-intensivas) para uma estrutura produtiva tecnologicamente mais avançada, sem forte desemprego? Espanha fez essa mudança estrutural à custa de anos e anos com o desemprego próximo dos 20 por cento da população activa.
Preocupante é o “abrandamento claro do esforço de contenção da despesa pública” previsto para 2008, como notava Sérgio Aníbal no PÚBLICO de sábado. Se é assim agora, como será daqui a um ano, em véspera de eleições? Não estraguem a boa surpresa deste Governo, ao empenhar-se em pôr ordem nas finanças públicas, uma novidade na democracia portuguesa.
Francisco Sarsfield Cabral
Obs: O Francisco revela uma preocupação com alguns sinais de musculatura democrática por parte do governo (e que eu interpreto como uma absorção de Sócrates nas questões da UE), demonstra conhecer a banalidade intelectual, política e técnica que foi a gestão da obsessão Manela Ferreira Leite no governo durão Barroso e reconhece algum mérito ao ministro das Finanças Teixeira dos Santos. Um artigo oportuno que deve ser lido pelo menos três vezes. Mas não necessáriamente de manhã, à tarde e à noite. Pode ser tudo logo pela manhã...