Contabilidades criativas: um texto de 2005 - ainda com (lamentável) actualidade
Contabilidades criativas: a grande mentira
Jean-Marie Messier, ex-presidente da Vivendi Universal, foi multado num milhão de euros pela AMF, a entidade reguladora do mercado de capitais francesa. Na base desta decisão está a divulgação deliberada, por parte de Messier e em nome da Vivendi Universal, de informações incorrectas e excessivamente optimistas sobre a contabilidade e a dívida do grupo, nos exercícios entre 2000 e 2002.
Acresce que Messier está ainda a ser investigado pelos tribunais franceses por suspeita de manipulação da cotação dos títulos da Vivendi em Bolsa, devido à prestação de falsas informações ao mercado. Ora foi sob a gestão de Messier que a Vivendi (ex-Compagnie Générale des Eaux) fez aquisições no valor de 60 milhões de euros para converter-se num grande grupo de media, operações essas que fizeram subir os prejuízos e endividamento da empresa para valores astronómicos (ocultados).
A invocação deste caso em que uma empresa engana (deliberadamente) o mercado através de práticas fraudulentas pode já estar a generalizar-se aos próprios Estados quando difundem as suas próprias estatísticas e as suas contas públicas, transportando para o primeiro plano do paradoxo o facto de serem as sociedades da informação que geram a indeterminação fundamental nos mercados financeiros e, por extensão, instabilizam os sistemas eleitorais que, em Portugal, desde 2002, não tem permitido aos agentes políticos terminarem os seus mandatos (primeiro com Guterres, depois, de forma mais grave, com Zé durão barroso, aqui por mera ambição pessoal e falta de escrúpulos pessoais e ética política).
Para as sociedades modernas que assentam na informação e para o funcionamento dos seus dispositivos e legitimação dos seus centros de poder, esta é, talvez, uma das maiores crises, visto que impossibilita uma resposta eficaz à crise dos pólos de modernização e à crise por força dos atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001. Mas o traço mais marcante desta prática decorre do facto de a crise dos mercados financeiros (americanos - onde se detectou práticas fraudulentas de contabilidades criativas com maior relevância) se estenderem à Europa e à Ásia, mostrando como hoje não há lugares isoláveis, ou seja, lugares seguros que ofereçam tranquilidade para o conjunto das relações económicas que se globalizam (e fragmentam).
Aliás, no caso dos mercados financeiros essa hipótese de isolamento em gavetas estanques é ainda mais remota do que nos mercados de sectores da produção ou de import & export. A questão que se coloca é saber se este é um problema tipicamente americano, e se tal decorre imediatamente da ausência de regulação dos mercados financeiros, cujas peculiaridades - não raro - andam associadas à cumplicidade dos agentes políticos com os gestores de topo que, na prática, dirigem as grandes empresas onde tais ocultações criativas são cometidas pervertendo as boas regras dos mercados através de práticas fraudulentas em larga escala.
Ora hoje é pacífico aceitar que a crise do mercado financeiro nipónico, na década de 80 e arrastando-se para a seguinte, teve a sua origem numa bolha especulativa resultante duma excessiva valorização do mercado imobiliário e de investimentos contraídos em empresas industriais, os quais distorceram as garantias bancárias dos empréstimos concedidos aos agentes empresariais, levando-os, por seu turno, a assumirem maiores riscos que não encontrava, do lado da procura, adequada relação. E não havendo compradores para esses bens gerou-se uma incapacidade de liquidar créditos provocando, assim, um bloqueamento múltiplo: do sistema bancário, do sistema empresarial que vivia de impulsos especulativos, e dos défices orçamentais por parte dos Estados. Foi o encadeamento deste conjunto de factores negativos que levou a banca à “cegueira”, e essa falta de liquidez traduziu-se numa incapacidade de consumo. E assim se perdeu a harmonia e o ritmo do crescimento económico no Japão.
Por outro lado, a globalidade dos processos de fusões e de aquisições e o lançamento de novas empresas no sector das novas tecnologias, foram financiados ou por emissões de acções ou por cruzamento de acções. Na prática, a expansão das empresas a operar no seio das condições da globalização competitiva (já) não se baseava apenas nos ganhos de competitividade, mas fundava-se nas valorizações das posições de capital obtidas nos mercados financeiros. Eram nessas grandes empresas que a eficiência e a expansão eram maiores, com a inevitabilidade da euforia especulativa. Só que após o ciclo de expansão, sobrevem o ciclo da explosão, só que este é evitado (ou atenuado) por recurso às tais práticas de contabilidade criativa de manipulação de resultados financeiros viciados entre agentes empresariais (e políticos) cujo objectivo era o aumento do poder efectivo da empresa medido pelos resultados criativos e pelas quotas de mercado.
Hoje, as crises já não são nacionais ou regionais, antes tendem a ser globais porque as más notícias correm depressa pelas praças financeiras. O caso Vivendi, como vimos, mostrou como o processo de formação de poder na esfera empresarial acabou por distorcer as avaliações em sede de competitividade no seio de um sector específico, o dos media, apesar de se tratar de uma empresa tradicionalmente ligada à distribuição de água e à construção civil. Haverá algum paralelo com o mercado português do futebol vs construção civil?
Esta tendência para resolver as crises por ocultação dos indicadores económicos reais só subverte o mercado. E mais tarde ou mais cedo o fio da ilusão parte-se e a tendência de ocultação das contabilidades criativas pode revelar um dado ainda mais grave: a cumplicidade dos partidos políticos e dos agentes políticos em geral desses mecanismos fraudulentos que se alimentam da ausência de entidades reguladores. É da leitura integrada destes expedientes que identificamos um conjunto de constrangimentos: desequilíbrio entre a produção e o consumo, falta de transparência e de informação económica e financeira aos mercados, práticas empresariais fraudulentas, incapacidade de agir em contexto de risco e incerteza, cumplicidade política.
Tudo isto conduz a uma sociedade sem visão de futuro, porque os pólos de conflitualidade tendem a multiplicar-se com desequilíbrios entre a gestão da decisão política e a democracia de massas. E uma sociedade que permite estas contabilidades criativas não responde à frustração das expectativas sociais bloqueando por indeterminação a realização das reformas.
Em suma, a crise é múltipla: é de produção e de competitividade, é de endividamento, é estratégica e, por fim, é de representatividade - contrastando a possibilidade (política) com a necessidade (social) corroendo a legitimidade do poder político. Uma grande crise económica conduz sempre à crise social e política. É entre a sociedade da conflitualidade (que nasce da necessidade) e o exercício da regulação do poder do Príncipe que identificamos a finalidade da Política. Tal serve para conter a conflitualidade de modo a que possa manifestar-se; e se ela se manifesta a política continuará a ser necessária.
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