sexta-feira

Ciber-anjos ou ciber-demónios? A rede da nossa vida

A selecção dos recursos que cada blogger usa na feitura diária do seu blog deixa-nos um espaço acrescido para alguma reflexão, para um domínio que está para lá da política e entra na esfera do pensamento e da filosofia. Encetando, assim, uma nova relação com a vida e o mundo - ainda que tenhamos o mesmo fim: a possibilidade duma morte iminente, logo, sem aviso-prévio. Eis a regra...
Viver a prazo... É sabido que o tempo real não tem retrocesso, daí ficarmos "pendurados" com a máquina, seja em lazer seja no domínio mais profissional. As bondades, as obediências mas também as desgraças chegam-nos agora por via electrónica, e é por essa via que se dá a prefiguração do real - em fusão "quase" total com a máquina.
O que nos leva a equacionar: será isto a nova religião? Já que são as influências imateriais que acabam por influenciar boa parte do que pensamos ou fazemos diáriamente. Quantas vezes o reencontro com o outro no ciber-espaço nos valoriza e quantas vezes ele também nos empobrece!? Qual será o saldo (positivo ou negativo)?
É nesta troca que hoje reside boa parte da nossa comunicação com o mundo, embora não acredite num "Deus electrónico", pois se Ele existisse há anos que a Net seria gratuita para todos, mormente para o Continente africano. Milagres..., só em Fátima e não é todos os anos e as ligações mágicas nem sempre são asseguradas com criatividade, segurança e fiabilidade. Mas o facto de existir o que existe muita coisa já mudou em nossas vidas. Ao nível das percepções, da produção de conteúdos, na velocidade da informação e da comunicação e o mais.
No fundo, o Rizoma é a rede das redes, o grande armazém das palavras, das imagens - aberta a todos - sem fronteiras onde cada um dialoga com o outro como sabe e pode. E alguns até aí encontram dinheiro e amor, pois muita gente já encontrou fontes de rendimento por esta via e outros até já contraíram matrimónios pela rede contribuindo assim para o desígnio nacional, que é o de aumentar a natalidade - que já está com uma taxa regressiva, o que faz com que Portugal seja um País de velhinhos a passearem no Colombo - já não só aos domingos, mas nos demais dias da semana.
No que respeita à blogosfera, o recurso mais maduro na rede, julgo estar diante - ao mesmo tempo - duma fonte de informação qualificada e de valor-acrescentado, qual espécie de promise land do III milénio mas, ao mesmo tempo, estamos diante dum écran - sem corpo - por vezes com alguma cabeça e com um tremendo narcisismo, daí o meu recurso ao Eclesiastes a fim de moderar as nossas paixões e ambições na feitura dos blogues, sob pena de ficarmos como o Narciso, alienado.
Ciber-anjos ou ciber-demónios??? Creio, contudo, que o saldo é francamente positivo - na forma e nos conteúdos e para proveito de todos. O lixo acaba sempre por ser varrido, ou seja, deixa de ser lido e evocado. Creio, pois, que a blogosfera veio mudar a riqueza do mundo e a forma de a expressar. Gerando uma espécie de ubiquidade permitindo que cada um de nós - seja uma espécie de deus menor capaz de encontrar o seu sentimento de Liberdade e de abertura ao mundo que nos alarga o campo operacional de escolhas. E é nesse leque de escolhas que conseguimos hoje transformar o mundo.
Mas não tenhamos dúvidas: há aqui a "regra das metades" para aqueles que falam e para aqueles que escutam, ou seja, o pensamento - na linha do que defende Montaigne - é 50% para aquele que emite e 50% para aquele que escuta.
Só que na blogosfera todos emitimos... Talvez seja isso que nos faz acreditar que estamos numa fase nova, de mudança de civilização.
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Com efeito, é importante termos sempre um momento do dia que nos abra os portões do paraíso mental desse hiper-criativo dolce fare niente. Nem que seja no WC.. Pode ser que consigamos aproximar-nos um pouco do génio que foi Pessoa. Um génio e, ao mesmo tempo, um homem excepcionalmente humilde e pacato, que morreu sem o reconhecimento que lhe era devido. Não sei se o crime foi dele - ou da turba..., que o cometeu de forma mais grotesca por ser por negligência.
Seja como for Pessoa além de estar sempre aí, já integra o nosso capital genético, intelectual e cultural, é uma fundação de Portugal. Oxalá o saibamos potenciar pela mão das gerações vindouras - que hoje mastigam pastilha e jogam na consola de PC.
FERNANDO PESSOA É UM CIBER-ANJO
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
.....
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
.....
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
.....
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
.....
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa