quinta-feira

Evocação de um amigo: António Manso Pinheiro. Um testemunho de José Mattoso sobre o desaparecimento de um Amigo

Uma palavra de dedicação e amizade ao António Manso Pinheiro, responsável pela Editora Estampa, de que tive a honra de ser amigo e de privar. Conheci-o na Estampa, nada lá editei, mas ficámos amigos imediatamente. Pela empatia que se gerou, o António era um homem duma vasta cultura e erudição e, ao mesmo tempo, simples, gentil e desmesuradamente amável. Um diplomata, mas sempre amigo e sincero, coisa que os diplomatas de carreira nunca foram. Almocei com ele várias vezes na António Augusto de Aguiar, num restaurante onde costuma ir e de que gostava muito, também fui a sua casa, perto da Igreja S. João de Deus - onde na década de 80 velei a minha avó, alí à Praça de Londres. E só hoje, a propósito do arranque da Feira do Livro, negligentemente, me dei conta do seu desaparecimento, quando o julgava vivo e a laborar em grande força na Estampa, essa grande Editora de publicações na área das Ciências Sociais e Humanas. Antes preferia não saber, confesso.
Quando lhe falava em Eça dizia-me sempre da superioridade do Camilo - que eu retorquia ser mais paroquial, emotivo e limitado. O António bem poderia ser meu Pai, era um homem com quem dava prazer privar, aprender e que muito me honrou com a sua amizade. Hoje desejaria abraçá-lo, mas só me resta o vazio da memória neste luta constante da perenidade da vida.
O texto infra é um testemunho acutilante feito pelo historiador José Mattoso, outro homem de grande valia e dimensão intelectual e humana, com o qual me identifico, por isso, e não querendo ser abusivo, aqui me associo a essas palavras e a essa recordação inesquecível pela memória que este distinto amigo me deixou.
Bem haja António Manso Pinheiro - cujo nº. tm hoje encontrei mas que, estranhamente, já nenhum sentido faz. Ou então é a vida, ela própria, que não faz sentido neste precipício dos dias..
Um testemunho do historiador José Mattoso sobre António Manso Pinheiro.
O falecimento de António Manso Pinheiro, editor da Editorial Estampa, não pode deixar de convidar quem se interessa por Ciências Humanas a parar um pouco para recordar o que Portugal lhe deve nesta matéria. Como pessoa excepcional pela sua delicadeza, pela fidelidade aos compromissos de amizade e pela maneira como transpunha para a vida profissional as suas crenças e convicções, tão pouco comuns no seu meio intelectual, constitui para todos quantos o conheceram de perto uma recordação inesquecível. Como editor, deixou uma obra que ocupa um lugar inconfundível no panorama da difusão cultural na área das Ciências Humanas, com particular relevo para a História, a Estética e a Literatura. Tendo, pessoalmente, colhido os maiores benefícios tanto de uma faceta como da outra, não posso deixar de recordar os nossos contactos como um verdadeiro dom que a vida me ofereceu. De facto, a relação que tive com ele exerceu uma influência determinante na minha obra histórica.
Conheci-o, creio, em 1977, por intermédio do meu colega Oliveira Marques, pouco depois de ter passado da Faculdade de Letras para a incipiente Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Não tendo eu nunca publicado senão artigos eruditos em revistas da especialidade, aceitou com toda a generosidade o risco de editar a minha primeira colectânea, a que dei o título A Nobreza Medieval Portuguesa. A Família e o Poder. Depois, encorajou-me a editar na mesma colecção a obra com que vim a obter o prémio Alfredo Pimenta, Identificação de Um País. Foi impressa quando ainda estava pendente o resultado do concurso. Com a sua incrível confiança na conjugação das influências astrais, disse-me, depois, que já o sabia por meio do meu horóscopo. O mundo das minhas crenças era, e é, diferente. Mas não pude deixar de ficar comovido com a sua forma de exprimir a confiança em mim. Na Editorial Estampa, o livro constituiu um sucesso editorial que eu não esperava de todo. Apesar de ter sido concebido como uma obra de investigação, esgotou-se rapidamente e foi reeditado várias vezes. Assim se preparou o caminho para o projecto da direcção de uma História de Portugal. Era ainda um projecto um tanto vago quando foi retomado pelo Círculo de Leitores. Tendo as duas editoras chegado a acordo, veio a ser publicado por ambas. Entretanto saíam na Editorial Estampa outras colectâneas minhas, uma reedição actualizada e com outra apresentação da Identificação de Um País e uma edição académica da História de Portugal destinada aos estudantes universitários, com mapas e gráficos, mas sem ilustrações, para poder ser vendida a preços mais baixos.
O êxito dos meus escritos ajudou a alargar e consolidar a projecção que a editora de António Manso Pinheiro já tinha. A colectânea sobre a Nobreza Medieval, publicada em 1981, saiu como um volume da colecção «Imprensa Universitária», onde já tinham sido traduzidos obras de Duby e de Le Goff. Em 1989, a colecção já contava com 74 volumes, entre os quais vários de Oliveira Marques, de R. Pélissier, de P. Chaunu, de F. Mauro, de Panofsky, entre muitos outros. Foi também aí que António José Saraiva reeditou algumas das suas obras, entre elas Inquisição e Cristãos Novos. Na década de 90, António Manso Pinheiro diversificou as colecções, criando uma com obras mais volumosas («Referência», onde saíram, entre outros, a edição revista da Identificação, Os Jesuítas de J. Lacouture, uma História da Europa e a edição crítica da poesia de Álvaro de Campos por Teresa-Rita Lopes), outra com textos históricos inovadores («Nova História»), outra, ainda, com ensaios da área da literatura («Leituras») e uma quarta com obras mais curtas consagradas à História de Portugal («Histórias de Portugal»). Nas duas últimas, Manso Pinheiro, com a sua generosidade habitual, acolheu teses de mestrado e outros textos do mesmo género, pouco rentáveis do ponto de vista editorial, mas muito importantes para o currículo dos seus autores e para um público restrito.
Mas a Editorial Estampa não publicava só obras universitárias, também ocupava, sobretudo desde a década de 80, o campo da literatura com a obra de José Rodrigues Miguéis, as obras completas de Almeida Garrett, com os pequenos volumes da colecção «Clássicos de Bolso», onde apareciam autores tão variados como Marco Aurélio, Descartes, Rousseau ou Rosa Luxemburgo, e com a colecção mais recente chamada «Ficções».
Nada disto, com excepção, talvez, da História de Portugal, dava grandes lucros, antes pelo contrário. Manso Pinheiro, com grande realismo, multiplicou, então, as traduções de livros para o grande público, especializando-se na literatura infanto-juvenil, nos escritos esotéricos, nos manuais de actividades práticas. Os lucros assim obtidos, sem serem fabulosos, permitiram-lhe continuar a publicar livros que lhe interessavam mais porque contribuíam de facto para o desenvolvimento cultural do País. Tendo beneficiado tão claramente do seu apoio editorial e da sua amizade pessoal, não posso deixar de o reconhecer publicamente e de sublinhar o estímulo que deu também a muitos dos meus colegas e alunos.
José Mattoso