segunda-feira

A direita e a esquerda, volver. Portugal em equação no Prós & Contras

Quando se tem 20 anos e algum gosto pela compreensão da coisa pública, das ideologias, que são sistemas intelectuais de justificação que ocultam interesses sectoriais ou transversais à sociedade, ainda se acredita naquela conceptualização de Direita e Esquerda que remonta à Revolução Francesa - em que aqueles que estavam sentados à direita do Rei eram os conservadores da ordem e do statu quo e aqueles que se sentavam à esquerda do monarca pretendiam a alteração geral de circunstâncias, ou seja, a revolução. De modo que os de direita são sempre os defensores da ordem que está, mesmo que seja má, e os de esquerda são sempre os que procuram a mudança - por via revolucionária ou reformista - como hoje quase todos os partidos defendem.
Sucede, porém, que os termos "direita" e "esquerda" já passaram a ser nomes vazios, i.é, sem sujeito nem objecto, descaracterizaram-se no espectro político e hoje pouco ou nada têm para oferecer à gestão operacional da polis e até à produção de ideias modernas ou modernizantes no nosso rectângulo inserido numa Europa cada vez mais economicista (e menos política) integrada num mundo altamente competitivo, também ele pouco sensível aquela artificial distinção que o homem inventou para arrumar ideias e ideologias aparentemente contraditórias, já que a lógica do poder esmaga e terraplana e quer sempre governar à esquerda, à direita e ao centro, até porque o poder tem horror ao vazio.
Portanto, sou dos que crê que direita e esquerda é uma falsa questão, sempre foi e agora mais do que nunca, além da realidade ser sempre mais rica do que as tipologias, mas devemos sempre rever aqueles conceitos para julgar os novos dados ou as novas interpretações dos dados antigos.
Dá-se o curioso caso de logo à noite o Prós & Contras da dona Fátinha Campos Ferreira ter como convidados dois velhos players da política nacional: o dr. Mário Soares e o douto Adriano moreira. Aquele um verdadeiro fundador da democracia portuguesa, um democrata, coerente na luta ao fascismo e ao ancien regime e um europeísta convicto; este um seguidor de Salazar, formado mentalmente na sua escola, intelectualmente de direita mas procurando fazer o pleno à esquerda para não criar atritos, sempre de bem com deus e com o diabo, fundador e fragmentador de universidades, um democrata-cristão que quase levou o cds à extinção e se amanhã a democracia evolucionasse para uma ditadura seria o primeiro a levantar o braço direito para fazer, de novo, a saudação da mocidade portuguesa. Eis o Adriano no seu clássico estilo de direita, esquerda e centro. Um amalgamador.
Entre ambos há um mar de diferenças, mas logo à noite elas não se notarão, e as convergências serão sempre mais do que as divergências. Até porque hoje todos somos pela igualdade, pela liberdade, pela razão e pelo rule of law, pela economia de mercado, pela emancipação da sociedade relativamente ao Estado a fim de diminuir a figura do Estado-patrão e do défice das nossas finanças públicas, do recurso à via reformista para governar e concretizar as reformas necessárias na Educação, na Ciência, na Economia, na Saúde, no Ambiente e nos demais sectores e sub-sectores da governação.
Onde estará, então, a grande diferença entre aquele clássicos conceitos de direita e esquerda? Está na qualidade dos homens que lideram, nas circunstâncias históricas feitas de conjunturas e na interpretação desses vectores utilizando mais um liberalismo de esquerda ou um liberalismo de direita - em função daqueles contextos.
Ou seja, logo à noite iremos assistir a mais uma manifestação da brigada do reumático a debitar banalidades que os portugueses mais atentos já conhecem há 30 anos: Adriano esfrega as mãos com um bispo e denuncia a sua preocupação pelo liberalismo selvagem que graça, sendo necessário humanizar a globalização dentro duma matriz mais conservadora e cristã; Soares desenvolverá a sua mímica a favor duma Europa mais social e menos economicista, criticará Blair e Bush pela guerra que fizeram ao Iraque e pelas consequências que isso teve na Europa e no mundo e, se tiver bem-disposto, ainda pugnará pela necessidade de criar um observatório da globalização para monitorizar as políticas públicas em Portugal a fim de coadjuvar no tal socialismo de rosto humano, já que quando governou o dr. Soares, consabidamente, meteu o socialismo na gaveta e governou em frente e muito capitalisticamente. O que só prova a nossa teoria de que até os soit-disant homens de esquerda governam à direita e vice-versa.. Assim como Guterres de esquerda governou à direita; e Cavaco de direita também rasgou à esquerda; e Socas diz-se da esquerda moderna mas em certas áreas sociais mais parece da velha e dura direita, finanças públicas oblige - dizem...
Assim, chegamos ao nosso quadro de referência: o homem governa com o poder na mão e na vã esperança de agradar a todos: aos de direita, aos de esquerda e aos centristas. Ele quer sempre fazer o pleno. Isto também sucede por uma razão: aqueles dois conceitos - direita e esquerda - não são conceitos absolutos, mas termos relativos, e como não são conceitos ontológicos ou substantivos a sua operacionalidade dependerá sempre do espaço onde são aplicados, dos líderes e das lideranças que os interpretem e apliquem, da conjuntura socioeconómica e do nível de modernização duma sociedade e dum conjunto de factores de dinamização e risco que, num dado momento, carecem mais de medidas integradas no liberalismo de esquerda, noutro momento carecem mais de medidas de um liberalismo de direita.
Eventualmente, esta noite veremos o democrata Mário Soares a filiar-se mais no liberalismo de esquerda e o ex-salazarista Adriano Moreira a filiar-se no velhinho liberalismo de direita, em certos casos ultra-conservador e nacionalista que até asfixia a economia e a sociedade.
Mas estes conceitos são sempre vazios, pois quando se procura identificar os seus pressupostos com os elementos estratégicos da realidade do momento fica-se paralisado, e os conceitos propostos deixam de ter utilidade ou potencial normativo que orienta a acção.
Por isso, defendemos que a direita e esquerda são as duas faces da mesma moeda: governar bem e com eficácia social, económica e política. Só que para que tal suceda é preciso haver um Poder forte, dotado de direcção política e capaz de implementar as políticas públicas essencias à sociedade num dado momento. Isto implica, no nosso caso, que Portugal se insira geoeconómicamente na fronteira Europeia e atlântica e sobretudo no hinterland ibérico - com competitividade nas actividades, nos factores e nas tecnologias estruturantes que utiliza para aplicar essas reformas. Com mais ou menos Estado social, com mais ou menos solidariedade, coesão e subsidiaridade... O futuro da sociedade e da economia portuguesa reside, pois, na forma como responder integradamente a este conjunto de constrangimentos, sendo que o objectivo será sempre superar, numa geração, os atrasos estruturais face à Europa desenvolvida que hoje nos serve de referência.
E é aqui que a "porca torce o rabo": como incrementar a produtividade e a competitividade nacionais, como elevar os (salários) e os baixos níveis de habilitação e qualificações dos portugueses, como reduzir o peso do Estado na sociedade (designadamente, pelo levantamento de impostos e de burocracia que hoje ainda nos tolhem), como formar um empresariado culto, dinâmico, fomentador do risco e não subsidio-dependente do Estado-paizinho... Numa palavra: como nos organizarmos enquanto sociedade e economia competitiva e promotora dum modelo de globalização feliz.
O que implica saber definir políticas públicas que conciliem risco com segurança, competição com protecção, dominação com equilíbrios sociais e níveis de capitalização (que hoje não dispomos, basta dizer que 90% das famílias portuguesas estão endividadas à banca para pagar a casa e o carro) com distribuição.
Perguntamos: o que é que tudo isto tem a ver com a direita e a esquerda? E, por extensão, para tornar esta equação ainda mais bizarra e anacrónica, o que é que esta problemática tem a ver com um ex-salazarista formatado nos quadros mentais do velho Botas e do Portugal rural, analfabeto e atrasado e o dr. Mário Soares que, apesar de ser um europeísta convicto e de ter feito muito por Portugal (do imenso que Portugal também já fez por ele)? Serão estes os quadros vivos e pensantes da nação? Serão estes, ambos com mais de 80 anos, os referenciais vivos do pensamento e da acção que a direcção de informação da RTPum vê como guias no Portugal do futuro neste 1º quartel do séc. XXI?
Das duas uma: ou a dona Fátima tem toda a razão e eu estou desfocado da realidade; ou a política de convites da RTP para dissertar sobre os temas mais variados que afectam o País é feito como nas festas de aldeia, em que uma quermesse oferece umas rifinhas e quem passa tira uma ao acaso. Quero crer que neste caso, e com o respeito que os portugueses devem ao democrata Mário Soares, se tratou de (mais) um acidente desse tipo.
Só que quem tirou a rifa também deve ter um pé em Santa Comba e outro na Grécia antiga, pois o que interessa nestas coisas entre direita e esquerda é mostrar sempre que se ama a liberdade e a autoridade ao mesmo tempo, assim, consoante as conjunturas, pode-se sempre defender a democracia em contexto duma ditadura emergente e, ao mesmo tempo, sem ninguém estranhar, defender uma ditadura em democracia. Às vezes é isto que significa a falsa equação direita vs esquerda, quando a lógica do poder é sempre terraplanar tudo com o máximo de consensos (ou à força, se caso for).
Quero crer que o dr. Mário Soares, pelo seu passado de democrata opôr-se-ía sempre ao regresso do ancien regime e dos salazaristas disfarçados de democratas e seria, mesmo a caminho dos noventas, um feroz combatente pela liberdade.
Julgo, no essencial, que para ele seria isto que significaria ser de esquerda num Portugal que deu novos mundos ao mundo e foi autor da 1ª vaga de globalização na história da humanidade.