De que depende a Felicidade - por Vergílio Ferreira -
Ser feliz. De vez em quando, discretamente, pudicamente, ergue-se em ti ainda esta velha aspiração. Mas já não são horas de o seres, seriam só de o teres sido. De que é que depende a felicidade? O que falhou avulta quando enfrentamos a pergunta. Mas só se não tivéssemos falhado saberíamos se foi isso que falhou. Sei o que falhou mas não sei se o que falhou foi isso. A felicidade ou infelicidade têm a sua escala de grandeza. Tenho os meus motivos grandes mas os pequenos absorvem-nos. Problemas do destino, da verdade, do absoluto que desse a pacificação interior. Mas eles apagam-se ou esquecem com uma simples dor de dentes. Assim eles me avultam apenas quando essa dor se apazigua. Que dores menores me pontuaram a vida toda? Do balanço geral há o que somos para os outros e o que somos para nós. Ser feliz. Possivelmente o problema está num dente cariado. Sei o que falhou. Não sei o que falharia ainda, se o mais não tivesse falhado. Que falsificação de nós inventamos para os outros que no-la inventaram? Ter grandeza no que se sofre para ao menos nos admirarem o sofrimento. O que sofri entremeado ao público sofrimento não tem grandeza nenhuma. Precisava bem de saber se a minha verdade definitiva não está aí. Ou ao menos a condição de tudo o mais. Para me negar radicalmente na obscuridade de mim. Para saber definitivamente o que vou entregar à morte. Porque pode ser só aquilo de que a morte tomará posse, sem restar nada de que tomem posse os outros.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'
PS: Não tenho muitas pessoas de quem me possa orgulhar de ter apertado a mão ao longo dos meus 40 anos... Mas cheguei a fazê-lo com Vergílio Ferreira, que andava sempre com aquela cara carrancuda, meio pálida, parecendo que todos lhe deviam e ninguém lhe pagava. Por volta de 94/95 ainda o conheci na livraria Bertrand da Av. de Roma, o homem era seco e pouco amável sob aquela cabeça de neve, mas não deixou de ser gratificante conhecê-lo. Morreu amargurado (mais um), e o Nobel foi para o outro que escreve sem pontuação e é o símbolo da arrogância intelectual, além de ser o único nobel da literatura portuguesa que vive em Espanha. Mas o Vergílio não era apenas um grande escritor, era, também, um filósofo existencialista, e essa condição fazia dele um escritor especial: pensante e pensável, reflexivo e metafísico que nos dava aquilo que a generalidade dos escritores não nos dão: metafísica, reflexão, seiva...
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