sexta-feira

Um marco histórico - por António Vitorino - Mais uma excelente reflexão

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António Vitorino
Jurista
Começou ontem, em Madrid, o julgamento dos 29 acusados pelos atentados terroristas de 11 de Março de 2004. Três anos após a barbárie que ceifou a vida a 191 pessoas e provocou ferimentos em mais de duas mil, o sistema judiciário espanhol vai ter de se pronunciar sobre aqueles que são acusados da autoria ou de participação, a diferentes níveis, naqueles atentados.
Sabe-se, contudo, que nem todos os envolvidos estarão presentes neste julgamento. Desde logo os autores materiais directos não responderão perante a justiça, em virtude de se terem suicidado alguns dias depois do atentado, quando se encontravam cercados pela polícia num apartamento de um bairro dos arredores de Madrid. A ausência dos autores materiais dificulta, naturalmente, a produção da prova, mas de forma alguma diminui a importância deste julgamento.
Desde logo, porque se trata do primeiro julgamento de implicados num atentado terrorista ocorrido em solo europeu. Nesse sentido, ele tem um efeito exemplar e demonstrativo.
Exemplar, na medida em que se destina a provar que é possível combater o terrorismo de acordo com as regras fundamentais do Estado de direito democrático. O julgamento decorre na Audiencia Nacional, o tribunal comum competente, em Espanha, para julgar este tipo de crimes, à semelhança do que tem sucedido com o julgamento dos implicados nos actos terroristas da ETA. Depois, porque se trata de um julgamento público, onde os acusados têm todos os direitos de defesa permitidos pela lei penal geral espanhola. Finalmente, porque a decisão será tomada por juízes independentes e estará sujeita a recurso para o Tribunal Supremo.
Mas este julgamento tem também um efeito demonstrativo: de que as democracias não são regimes débeis perante o terrorismo. Neste particular, tudo o que se passar na sala de julgamento será essencial para o futuro do combate ao terrorismo na União Europeia. Desde logo, porque obter as condenações dos acusados exige a produção de provas irrefutáveis que permitam estabelecer, com segurança, a sua ligação aos actos preparatórios, de execução e de encobrimento dos atentados e dos seus autores materiais, bem como o estabelecimento do quadro de referência da acção terrorista em causa, designadamente a prova da pertença a um grupo terrorista organizado e com finalidades assassinas.
A produção desta prova reveste-se de melindre e de dificuldades. Em parte, porque o "elo operacional" não está presente, na medida em que os autores materiais estão mortos. Em parte, porque a prova recolhida se baseia em testemunhos ou informações cuja demonstração, perante os juízes, pode pôr em risco a segurança das fontes humanas relevantes, o que faz com que várias das testemunhas se apresentem em tribunal ao abrigo de programas de protecção das testemunhas. Em parte ainda, porque uma componente da informação pertinente foi recolhida por entidades e serviços de outros países, cuja vontade de colaboração num julgamento com estas características nem sempre está presente. Basta recordar o que foi a atitude de desconfiança dos serviços de informações norte-americanos no denominado "julgamento de Hamburgo" (onde estava em causa condenar o único europeu detido ligado directamente aos atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA) para compreender a relutância em fornecer informações confidenciais que sirvam de prova num tribunal que se reúne em sessão pública...
Por todas estas razões o julgamento de Madrid será simultaneamente um laboratório e um marco histórico.
Na primeira dimensão será um teste decisivo à capacidade de obter a condenação penal dos inculpados que efectivamente tenham responsabilidades nos atentados no respeito pelo quadro de direitos, liberdades e garantias essencial de uma democracia como a espanhola.
Mas será também um marco histórico, na medida em que completar a sanção dos terroristas é a homenagem que podemos e devemos prestar àquelas 191 pessoas que, na madrugada de 11 de Março de 2004, vinham dos subúrbios de Madrid para os seus trabalhos e foram vítimas da cegueira assassina. Nada devolverá a vida às vítimas mortais, mas a conclusão com sucesso do processo judicial demonstrará que não morreram em vão!
  • PS - Um voto final: que o julgamento não fique refém das querelas políticas internas espanholas, já que não se pode nem deve pedir aos tribunais que resolvam o que só os políticos do PSOE e do PP podem resolver no plano político.

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  • Nota do Macro: seria muito interessante que em Portugal funcionasse equivalente eficácia e eficiência jurídica no combate - não ao terrorismo, que felizmente ainda não tivemos, mas, desde logo, pela produção de prova no caso Camarate que vitimou personalidades do Estado, casos de corrupção e média e alta criminalidade, de pedofilia e muitos outros tipos de crime contra a sociedade que, pela natura delicada e quase invisível da respectiva produção de prova, fica em larga medida no segredo dos deuses. Como diria Albert Cossery num artigo que aqui publicámos recentemente, há Homens que são esquecidos por Deus (link), e desses o aparelho de Jutiça não cura. Este é mais um ensaio de António Vitorino vertido em artigo que vale a pena meditar.