terça-feira

Albert Cossery alí para o CLARO

Cossery partiu e deixou obra. O Claro de José Mateus faz-lhe uma referência, ainda que para nós Homens assim nunca morram. Reeditamos aqui um texto de sistematização do ano passado - em homenagem a Cossery.
Numa palavra: Cossery fica.
"Albert Cossery, nasceu no Cairo em 1913, no seio duma familia original, de tradição cristã copta. O pai, proprietário de terras, nunca fez nada para acumular riqueza, promovendo entre filhos a rejeição do trabalho (Mandriões no Vale Fértil é em parte um romance autobiográfico). A mãe, analfabeta, levava-o ao cinema, no tempo dos filmes mudos, para ele lhe ler as legendas. E os irmãos mais velhos, grandes leitores de Nietzsche, Dostoievski ou Baudelaire, transmitiram-lhe a paixão pela literatura universal - decidindo o pequeno Albert, por volta dos dez anos, que seria escritor.
Na infância e na adolescência Cossery frequentou as escolas francesas do Cairo, contribuindo isso, sem dúvida, para ele adoptar o francês quando começa a escrever, por volta dos dezoito anos. As suas primeiras novelas, marcadas pela revolta, saíram em revistas do Cairo. Coligidas em 1940, deram nesse primeiro ano ano o seu primeiro livro (Os Homens Esquecidos por Deus), editado no Cairo em três línguas: árabe, inglês e francês. Foi esta obra que o tornou internacionalmente conhecido; o título foi retomado na Argélia pelo francês Edmond Charlot, em cuja editora Albert Camus era director literário, e nos Estados Unidos por Henry Miller; este último escrevera um empolgante ensaio sobre Cossery onde expõe (foi ele um dos primeiros) a famosa preguiça cosseriana como uma concepção filosófica.
Mas o nosso autor, que já estabelecera no Egipto uma sólida amizade com Lawrence Durrell, vai trocar as voltas a este auspicioso começo duma carreira literária, decidindo, para viajar, empregar-se como criado de bordo na marinha mercante, na linha Porto Saíd - Nova Iorque (o único emprego que teve). E após algumas estadas em Inglaterra, instala-se em Paris, em 1945, num quarto de hotel que nunca mais deixou.
A ida para Paris destinava-se a prosseguir ali os seus estudos escolares, mas Cossery, esquecendo tais coisas para sempre, dedicou-se logo a actividades muito mais interessantes: as noitadas, as desbundas amorosas, a boémia. O seu principal companheiro nesses vastos empreendimentos foi Albert Camus, mas no mesmo contexto também foi grande amigo de Jean Genet, Roger Nimier, Alberto Giacometti e outros pilares da noite.
Cossery considera-se um escritor egípcio de língua francesa, tal como há, diz ele, muitos escritores indianos de língua inglesa. Em 1990, aos setenta e sete anos, foi-lhe atribuído pela Academia Francesa, pelo conjunto da suas obra, o Grande Prémio da Francofonia - apesar de em quase sessenta anos de «carreira» literária apenas ter escrito oito livros: sete romances e a citada colectânea de novelas. Porque, fiel à sua filosofia da indolência e do desprendimento, a rejeição do trabalho foi sempre para ele a grande luz."
Júlio Henriques
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Quando pensamos que já escrevemos umas coisas levamos com duche de chuva ácida e percebemos quão pequenos ainda somos. Tal decorre do choque térmico legado por Cossery, o escritor egípcio que fazia apologia do ócio para assim melhor saborear a vida e nela reconhecer os fluídos mais prazenteiros. Há quem dê em maricas ou vá para a droga, a muitos de nós, dá-nos pra isto - postar blogues que julgo serem de serviço à comunidade. E nem sequer me vou comparar com a generalidade dos jornalistas por respeito a mim próprio, além de não valer a pena.
Mas a lição de Cossery é a da coerência, além da sua qualidade intelectual indiscutível. Sem up & downs, è semelhança de Eça, não se vislumbra alí frase, expressão, palavra ou vírgula a mais. Tudo nele é essencial, o que deve ter sido uma técnica amadurecida nas noitadas que passou com os seus amigos em Paris...
Mão não deixa de ser estranho que um homem que está quase 40 anos fora do seu País de origem, o Egipto, instalado num quarto em Paris, não o esquece sendo que as histórias e narrativas dos seus livros se desenrolam nos bairros pobres do Cairo. Se atentarmos bem hoje no mundo, veremos fácilmente que os seus enredos são hoje bem um reflexo do mundo contemporâneo, já que somos hoje, em larga escala, homens esquecidos por Deus, para reproduzir aqui a sua expressão que, porventura, mais o internacionalizou. É óbvio que muitos de nós não são pegas, ladrões, chulos e assim..., somos gente de bem, mas coloca-se a questão filosófica de saber quando é que Deus se irá lembrar dessa gente esquecida?!
Por outro lado, quando Cossery refere que desejaria que as pessoas após o lerem não fossem trabalhar no day after, está a ser sincero e coerente com toda a sua filosofia de vida. E o facto de ficarmos em casa para ter tempo para o ler é, em certos casos, uma singular maravilha. Aliás, como dizia Blazé Pascal, um dos grandes problemas do mundo resulta dos homens não saberem ficar nos quartos. Embora, fosse óbvio que se permanecêssemos eternamente neles enlouqueceríamos.
Em Portugal, foi a Editora Antígona que promoveu a edição dos livros de Cossery, esperemos não terem esgotado. Mas, de facto, é como diz o José Mateus do CLARO, não se pode andar pelas ruas da cidade a perguntar às pessoas: conhece Albert Cossery? Além de levarmos tampa, ainda seríamos cunhados de tontos à boca do Júlio de Matos. E para quem se considera lúcido ser cunhado daquela maneira dá vontade de fazer um disparate a seguir.
Por último, deixamos aqui aos nossos leitores e também para o autor daquele blog CLARO - um dos espaços de reflexão estratégica melhor informados e mais avisados, algumas referências bibliográficas desse monstro enigmático que é Albert Cossery, um exemplo de vanguarda para todos nós, um pensador e um escritor fracturante. E depois nunca temos a certeza de que trabalhando intensamente conseguimos criar riqueza, ao invés, entrando no caminho do ócio muitas e belas ideias poderão ser criadas. Mas convém não abusar da sorte, senão um dia vamos ao frigorífico e só temos lá uma montanha de ócio... E os livros de Cossery também não enchem a barriga, embora para ele talvez desse para pagar a renda do quarto de Paris.
Vejamos, telegráficamente, algumas dessas narrativas, parte delas foram-me enviadas por amigos ultimamente - que hoje com gosto, duma rajada, aqui partilhamos.
Os Homens Esquecidos de Deus (1940). Uma investigação policial originou uma descoberta estrondosa: não a do assassino, mas uma descoberta de outro natureza, profundamente humana. O vendedor de hortaliça tinha sucumbido, ao que parece, sob a pressão fortíssima de um penico em Terracota que lhe atirou à cabeça, da janela do seu pardieiro, Radwan Aly, o homem mais pobre do mundo. A profunda humanidade do acontecimento residia no seguinte: o penico com que Radwan Aly tinha atingido o vendedor era o único bem, o único móvel da sua casa, e não hesitara em sacrificá-lo para salvaguardar o sono de toda a rua. Perante um tal sentido do sacrifício, até os próprios polícias ficaram confundidos. A Casa da Morte Certa (1944). Parecia que a casa, que entretanto desabara, encerrava dentro de si um espírito doentio que alimentava a perturbação das almas. Com o seu silêncio hostil, Rachwan Kassem exercia uma influência oculta devastadora. A todos quantos o foram ver tinha oferecido o espectáculo de um homem submetido às piores dores, congeminando vinganças inflexíveis.
Mandriões no Vale Fértil (1948). Se o mundo se transformou numa coisa mal-humorada, isso deve-se ao facto de agora ser preciso muito dinheiro para viver. A vida é muito simples, mas tudo conspira para a tornar complicada. É quando nos vemos livres da ambição do dinheiro, do orgulho ou do poder que a vida se revela formidável.» A mandriice, longe de ser um defeito, é cultivada como uma flor rara e preciosa pelas personagens deste livro. Galal, o filho mais velho, é considerado o mais sábio de todos porque passa a vida na cama desde há sete anos e só se levanta para ir à mesa. Rafik, o do meio, renuncia a casar-se com a mulher que ama temendo que ela perturbe para sempre a doce sonolência que reina lá em casa. Como terá Serag, o mais novo, a loucura de ir trabalhar para a cidade? Porque a verdade é esta: o trabalho só pode engendrar desordem e desgraça.
Mendigos e Altivos (1955). Gohar, ex-professor universitário de Literatura e Filosofia, mendigo por decisão própria, conduz-nos a uma visão do mundo civilizado, enquanto inutilidade orgânica, num explosivo cocktail de escárnio e reflexão.
A Violência e o Escárnio (1964). Numa cidade do Próximo Oriente, governada por um tirano, um pequeno grupo de contestatários, decide combatê-lo pondo-o a ridículo. Para isso, espalham por toda a cidade um belo cartaz contendo o retrato do governador e um texto tecendo os maiores louvores à sua acção governativa. Inventam assim uma nova forma de acção política...
Uma Conjura de Saltimbancos (1975). Todos os países tinham o seu contigente de imbecis, de sacanas e de putas. Era preciso ser um débil mental para acreditar que se passavam coisas importantes noutros lados. A única diversidade era a da linguagem e a única novidade era que os mesmos imbecis, sacanas e putas se exprimiam numa língua diferente. Medhat recusava-se a absolver a aberração dos que aprendiam toda a espécie de idiomas estrangeiros a fim de penetrar o sentido das mesmas palermices que podiam ouvir na sua terra, sem precisar de se deslocar e gratuitamente. Pela sua parte, nunca se sentira tentado a percorrer o planeta à procura se sensações ditas transcendentes por se situarem em hemisférios distantes. De que servia mudar de continente, aspirar a outros climas, se não se conseguia ver, em primeiro lugar, o que se passava à nossa volta?
Uma Ambição no Deserto (1984). O xeque Ben Kadem, Primeiro-ministro do emirado de Dofa, interroga-se sobre como conseguir um papel na cena internacional, encontrando-se ele à frente de um Estado miserável, completamente eclipsado pelos Estados vizinhos, produtores de petróleo. Inventa um estratagema: simular atentados à bomba, reivindicados por uma denominada Frente de Libertação fantasma. Tal medida corre o risco de fazer despertar a simpatia por parte de movimentos revolucionários internacionais e a inquietação dos grandes poderes tutelares. Para executar o seu plano, recorre a um jovem aventureiro, Shaat, que retira da prisão onde este cumpria pena por tráfico de ouro. Shaat passa a fabricar as bombas que Mohi se encarregará de fazer explodir. Mas o controlo desta falsa vaga de terrorismo escapa ao Primeiro-ministro, e Mohi - nem mais nem menos do que o seu próprio filho - é morto pela explosão prematura da bomba que transporta.
As Cores da Infâmia (1999). O que mais agradava Ossama era contemplar o caos. De cotovelos apoiados no corrimão da passagem aérea cujos pilares metálicos rodeavam a praça de Tahrir, ruminava ideias atrevidamente contrárias aos discursos propagados pelos pensadores oficiais, os quais garantiam que a paternidade de um país estava subordinada à ordem. O espectáculo que tinha diante dos olhos condenava sem apelo essa afirmação imbecil. Desde há algum tempo que aquela construção, imaginada por engenheiros humanistas para evitar aos infelizes peões os perigos da rua, lhe servia de observatório panorâmico, reforçando a sua íntima convicção de que o mundo poderia continuar indefinidamente a viver na desordem e na anarquia. Conversas com Albert Cossery (1995). O escritor egípcio Albert Cossery conversou durante horas com Michel Mitrani das origens da sua obra e das influências e amizades literárias que atravessaram a sua vida. Nascido em 1913, Albert Cossery vive, desde 1945, em França onde publicou a maior parte dos seus livros. Os escritos de Cossery lançam um forte desafio à preguiça e à reflexão neste mundo de superprodutividade. Com o seu incomparável olhar sobre os costumes e atitudes contemporâneos, Cossery convida o leitor ao despojamento e ao riso como forma de subverter os valores dominantes, que alienam e oprimem as mulheres e os homens do nosso tempo.
Chego a pensar, depois desta lição que Cossery nos dá diáriamente, basta que nos recordemos dele, se o PM - José Sócrates não teria tido mais sucesso se quando foi à China perfilhasse desta filosofia do ócio e do despojamento. Tivemos um esboço deslocado dela vociferado por Manel Pinho, o que acabou por ter um efeito contraproducente.
Eis o que o tempo faz às pessoas: tritura, corrói e depois mata.
Mas antes de matar poderá ver-se aqui algumas das suas obras:
Editora Antígona, que publica editores refractários. (link)