sexta-feira

Expediente ou ambição? - António Vitorino

Jurista
Esta semana, em Estrasburgo, perante o Parlamento Europeu, a chanceler alemã, acompanhada pelos primeiros-ministros de Portugal e da Eslovénia, apresentou o programa de 18 meses das três sucessivas presidências da União Europeia.
Na economia do discurso de Angela Merkel e da leitura que dele foi feita pela comunicação social resulta claro que vamos entrar num período com uma agenda europeia sobrecarregada: relações transatlânticas, última oportunidade para as negociações de Doha, política energética e relações com a Rússia, estratégia para o pós-Quioto em matéria de alterações climáticas, responsabilidades no domínio da segurança e da defesa quer internamente quer externamente, em especial no Líbano. Nesta longa lista figuram também pontos onde o contributo português, no segundo semestre deste ano, será muito relevante, designadamente no tocante às relações da Europa com África e com o Brasil.
Mas sem dúvida do ponto de vista da projecção pública e do impacto sobre o ambiente geral da política europeia avulta a questão constitucional, isto é, a decisão sobre o destino a dar ao Tratado Constitucional que foi rejeitado por franceses e holandeses em referendos realizados em 2005. Será injusto resumir a imagem de marca de uma presidência, ou de uma equipa de presidências, ao resultado obtido sobre o tratado, mas do ponto de vista da grande opinião, um insucesso nesta frente será sempre entendido como "um fracasso histórico", para usar as palavras da própria chanceler alemã.
Nos termos do acordado no ano passado, caberá à Alemanha apresentar em Junho próximo um roteiro de superação da crise constitucional, o qual deverá ser aplicado pelas sucessivas presidências portuguesa e eslovena, de modo a concluir o processo no segundo semestre de 2008, durante a presidência francesa, e antes das eleições para o Parlamento Europeu, que terão lugar em Junho de 2009.
Conforme deixou claro a chanceler alemã, a intenção da presidência consiste em apresentar ao Conselho Europeu de Junho deste ano não apenas uma metodologia mas também orientações de substância sobre a forma de superação do impasse constitucional.
Ora, é aqui que as coisas se apresentam mais complexas.
Com efeito, o ponto de partida assenta em 18 países que já ratificaram o Tratado Constitucional, dois que o rejeitaram e sete que se mantêm a aguardar para ver... A solução que se pede aos alemães aproxima-se assim da quadratura do círculo: respeitar os que já ratificaram o Tratado (que legitimamente dizem não poderem ser culpados pelo impasse), criar espaço para que os que o rejeitaram possam revisitar a sua decisão (com base num texto que corresponda às suas preocupações próprias para enfrentar as rejeições anteriores) e finalmente não abrir novas frentes de conflito, designadamente com aqueles que ainda não se pronunciaram (muito em especial o Reino Unido).
Para dificultar ainda um pouco mais o cenário, importa reconhecer que das últimas eleições holandesas não saiu um mandato claro sobre as intenções das autoridades da Haia quanto ao futuro do Tratado Constitucional. Há dois meses que estão em curso negociações para formar o novo Governo holandês e aguarda-se com expectativa o que dirá o acordo de governo sobre este ponto específico.
Por outro lado, a clarificação da posição francesa só ocorrerá depois das eleições presidenciais de Maio, ou seja, a escassas duas semanas do Conselho Europeu. Claro que entrementes a presidência alemã não deixará de burilar soluções possíveis com os dois candidatos presidenciais mais relevantes (Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy), mas do que ambos já declararam em público a este propósito sabe-se que não coincidem nas soluções que preconizam.
De facto, o candidato da direita fala num "minitratado" centrado sobretudo nas soluções institucionais: embora o elenco das questões a incluir nesse "minitratado" não seja tão limitado quanto o nome indicia, na realidade o que se pretende é que esse novo texto pudesse ser aprovado por via parlamentar em França, evitando-se um novo referendo.
Por seu turno, a candidata da esquerda tem evitado entrar nos detalhes da sua posição (sabendo-se, como se sabe, que é a esquerda que a este propósito mais se encontra dividida em França...) mas deu esta semana a entender que preferiria um aditamento ao Tratado Constitucional que versasse sobre as questões sociais na Europa, deste modo respondendo às preocupações dos seus eleitores que votaram "não" em Maio de 2005, mas, ao mesmo tempo, indiciando que a superação da crise não poderá deixar de passar por um novo referendo em França.
Acresce ainda que em breve Tony Blair deixará a liderança do Governo britânico e que o seu provável sucessor, Gordon Brown, não é conhecido pela sua faceta pró-europeia...
Como se vê, a tarefa alemã não se apresenta fácil. A escolha de fundo que cabe a Angela Merkel será, pois, entre um expediente e uma ambição. A sua actuação no plano europeu ao longo deste último ano já demonstrou saber conciliar realismo e ambição. Sejamos então optimistas!
  • PS: O sublinhado é nosso
  • Afixe-se na Vitrine da União Europeia, na montra política de Portugal, mundo e arredores

Obs. Macroscópicas

É mais uma reflexão de António Vitorino a exigir meditação atenta, posto que aquele seu 2º parágrafo - inscreve um conjunto de factores e de acontecimentos internacionais que podem não reaalizar-se de forma linear, e se assim fôr a Europa fica novamente "pendurada", com a agravante de ter a liderança de merceeiro que tem. Ao ler esta reflexão - daquele que foi considerado pelo Macro o analista revelação do ano de 2006 - (e nem era preciso fazê-lo, porque os portugueses não são cegos) - pensei na crise portuguesa e o modo como a mesma está inserida na crise europeia. Trata-se, pois, duma crise de integração europeia de espaços nacionais que revelam graus de modernização e trajectórias de desenvolvimento muito distintas, o que explica o nosso desenvolvimento relativo face aos demais Estados-membros.

Todavia, importa referir que esta crise europeia está, por seu turno, inscrita na crise mundial de adaptação ao exercício de hegemonia global dos EUA. Ou seja, aquilo para que me remete a reflexão de António Vitorino (AV) é a percepção dessas "bonecas russas", dessas matrioscas que mostram como as crises se encaixam umas nas outras naqueles três níveis da decisão, como se fossem cascas de cebola. Aliás, Vitorino, premonitóriamente, fala-nos duma "agenda europeia sobrecarregada:

Relações transatlânticas, última oportunidade para as negociações de Doha, política energética e relações com a Rússia, estratégia para o pós-Quioto em matéria de alterações climáticas, responsabilidades no domínio da segurança e da defesa quer internamente quer externamente, em especial no Líbano.

Isto parece-me mais um ideário ou um programa para a década e não um programa para uma, duas ou mesmo três presidências nestes últimos 18 meses que se iniciaram em Janeiro de 2007 com a presidência alemã, seguida da presidência portuguesa da UE.

Ou seja, e para apenas dizer por outras palavras aquilo que acima AV perspectivou, esta reflexão chama-nos a atenção para o encaixe daquelas três dimensões críiticas que são, ao fim e ao cabo, três tipos de crises distintas mas interdependentes entre si: a crise nacional, a crise regional e a crise mundial. Todas elas presidem aos acontecimentos em curso e que ora sobressaem em cada conjuntura: isto implica que qualquer que seja a localização da origem dessa crise, os seus efeitos depressa se difundem para os demais níveis, alterando as condições em cada um desses níveis de decisão, mudando também as previsões feitas e obrigando a rever expectativas formadas. Como? no seio da sociedade portuguesa, como sistematiza - e bem - Vitorino, no tocante às relações da Europa com África e com o Brasil. Que são dois pilares estruturais e seculares da nossa história diplomática mas que não têm sido explorados devidamente de parte a parte.

Depois sobrevém as questões mais formais e jurídicas decorrentes de a França e a Holanda terem rejeitado o Tratado e de aquela ter eleições presidenciais à porta. Tudo isto é muita coisa ao mesmo tempo, e são estes diferenciais de ritmos entre a mudança na realidade das condições concretas e a inércia nas concepções teóricas não têm efeitos neutros, ao invés, têm até efeitos negativos no modo como as sociedades nacionais se desenvolvem e também como a UE no seu tecido conjuntivo faz os devidos ajustamentos entre si e passa, por outro lado, a saber relacionar-se com os outros dois geoblocos: EUA e Ásia, apesar da liderança de barroso ser apenas uma gestão caseira feita por um contabilista que já nem nas memórias de Fernando Pessoa teria lugar.

No fim António Vitorino, creio, deixa mais incertezas e desafios do que certezas. Explicito: o sucesso da UE depende da adaptação que cada Estado-membro conseguir ao conjunto em que se insere. Por motivos socio-estruturais por demais conhecidos, haverá sempre actores menos eficazes e mais lentos do que outros no caminho dessa modernização e escala ascendente a caminho do desenvolvimento. Dito isto, as construções teóricas e doutrinais do Estado português, por exemplo, terão sempre mais resistências a atingir os objectivos propostos pelo núcleo duro da UE do que outros Estados melhor qualificados e preparados.

E é este diferencial político, além da futura liderança britânica não ser pró-europeia - dado que Gordon Brown atira mais para o lado da linha política de Margaret Tatcher do que para o evolucionismo "blairiano", que se afigura como fonte de turbulência política dentro, claro está, dos efeitos desdobrados de crise no seio daquelas três dimensões críticas (nacional, regional e mundial) acima sinalizadas. Mesmo que que António Vitorino termine a sua reflexão com optimismo acerca da condução política da Europa, e atendendo a que a "ambição e realismo" político de Angela Merkel não tenha o peso nem a conotação hipócrita e/ou oportunística do actual mordomo-mor da Europa - não podemos deixar de reconhecer a natureza das coisas que mudam juntamente com as reacções defensivas dos actores políticos envolvidos, sendo certo que as reacções das sociedades menos desenvolvidas (como a nossa) também podem ter comportamentos perplexos e/ou paralisantes.

Confesso que desejaria aqui partilhar do optimismo moderado de AV, ele até poderia ser indutor de uma dinâmica de crescimento e desenvolvimento, contudo atrevo-me aqui a pensar que estes nossos tempos de mudança poderiam ser bem menos agitados e indeterminados se estas três crises não estivessem em funcionamento ao mesmo tempo.

  • Com uns EUA desnorteados percebendo, dramáticamente, que não basta ter a força para impôr uma cosmovisão;
  • Com uma UE falha de visão e de liderança - que se agravou quando a Europa importou mais um problema político chamado durão barroso);
  • E com inúmeras reacções defensivas por parte das sociedades dos Estados-membros que ainda não sabem bem como racionalizar as vantagens decorrentes da sua integração neste grande espaço que é a UE.
    Entre o optimismo de uns e o realismo de outros será bom seguirmos estes, pois como dizem os russos: um realista é sempre um pessimista bem informado. Mas os russos também não são exemplos a seguir, os EUA muito menos, a Europa devolve-nos a cara massacrada de um durão barroso inepto e guloso de poder mas sem plano à vista - resta-nos sonhar novos amanhãs que cantem. Cá e na Europa...
    Creio, afinal, que estamos mesmo entregues a nós mesmos. Ou seja, estamos no meio da bicharada... É o fun-gá-gá, o fun-gá-gá da bicharada...