terça-feira

Pedras rolantes "ao som" Milan Kundera.. "Abençoados" soviéticos que invadiram Praga/68

Michael Nyman - The Heart Asks The Pleasure First
The Piano

Carmina Burana - Era Band - The Mass

Tocado pela minha própria memória do tempo que passa fui empurrado a invadir a prateleira e sacar o velho checo, Milan Kundera, hoje com 77 anos, que atravessou parte da sua vida pela guerra imposta pelo totalitarismo soviético, além das expulsões da Universidade, obrigando-o a tornar-se intermitentemente num operário e num pianista num grupo musical. Mas que experiência de vida teve este Kundera - que de 1960 a 1980 passou a vida a escrever e a tocar o que pôde e soube.. Pelo meio, sofreu os castigos habituais do comunismo concentracionário soviético: viu os seus livros retirados da biblioteca, o seu próprio nome eliminado da lista telefónica, etc... Depois retiram-lhe a própria nacionalidade checa e exila-se em França - onde o Presidente François Miterrand lhe concede a nacionalidade francesa.
Por o cá pcp da aldeia expulsa autarcas em funções (vide o caso de Setúbal) e agora a deputada Mesquita que não quer ser domesticada pelos velhos apparatchics disfarçados de democratas da Soeiro Pereira Gomes. Onde até existe um menino gordo com ar de velho cansado e seboso (qualidade de sebo) que defende no hemiciclo de S. Bento que a Coreia do Norte é uma democracia. Só mesmo democracia como a nossa é que se permitem ouvir impunemente baboseiras desse teor e nada fazer...
Enfim, lições do comunismo do Leste aplicadas mais suavemente ao burgo, embora isso não bastasse para os tugas terem produzido uma Insustentável leveza do ser à portuguesa.
Não tivémos a arte de criar o nosso Tomás (tivémos sim!!! outro Tomás - mas não era médico, era arquitecto, e fez imensos estragos em senhoras respeitáveis e já casadas..., além da obra das Amoreiras); mas temos imensas Sabinas - "artistas do plástico" que interpretam o mundo à luz da sua lente artística; e também temos algumas Terezas - pequenas garçonetes que sonham vir a ser modelos, sendo que para o efeito dormem com Lisboa inteira, mas sem sucesso: ficam rebentadas e depois nem para o plástico servem; hoje as Universidades estão repletas de Terezas - mulheres inseguras, sonhadoras, obsessivas - explorando um amor estranho, porque nem sempre ele coincide com a felicidade.
Mas o que mais me satisfaz em Kundera é a sua capacidade em fazer derivar as identidades dos seus personagens, das suas histórias, situações e enredos para aquilo que podemos classificar de romance filosófico. Aliás, o eixo que cruza todo o drama emana daí: a ideia do eterno retorno do louco do Frederico Nietszche.
Tais derivas surgem-nos quando constatamos esses pensamentos do eterno retorno, que nos aparecem com imenso peso, imensa responsabilidade - já não nos romances - mas nas nossas próprias vidas, dada a impossibilidade de desfazermos os nós górdios que demos, as opções que seguimos, as decisões que tomámos. Essa impossibilidade de fazer recuar o tempo para realinhar aquele complexo de opções-decisões - essa leveza - confronta-nos com o muro da impossibilidade de as refazer. É aqui que brota toda a Insustentável leveza do ser - num misto de quimera utópica - em que já nem o sexo, o amor, a fidelidade, a privacidade e a até a própria ideia de LIBERDADE - farão grande sentido, ou têm grande autonomia.
Mas o livro é capaz de nos dizer mais, muito mais. Diz-nos que sobre cada take hà uma deambulação e uma reflexão filosófica, bebida nos clássicos, mas agora aplicada milimétricamente aos seus personagens centrais: o garanhão Tomás, a artista e bela Sabine e a carente e volúvel Teresa. A esta luz, o drama revela-nos muitas coisas relevantes para as humanidades - psicologia, sociologia, história, epistemologia, estética, dado que é a beleza, mas também a memória e o talento que estão em jogo nessa equação complexa que é o próprio jogo da vida.
Aqui o escritor põe-nos à prova, e joga-nos contra a parede do Ser e diz-nos: ou temos essa intuição de atenção global confeccionada por uma expectativa múltipla e integrativa, ou estamos feitos porque não conseguimos integrar conhecimento, e sem isso não percebemos nada de nada, cegamos. Por isso há dias, sob o lema do Intelectualismo emergente na blogosfera - numa reflexão que não foi devidamente compreendida (porque lida à pressa) nem meditada (porque pouco amadurecida) - algumas pessoas debitaram logo tratar-se de uma "arrogância" pegada por quem a escreveu. Não foi só a injustiça manifestada perante o autor da reflexão (de somenos importância), foi o acto de injustiça que as pessoas em questão demonstraram pela sua própria inteligência, mostrando que só raramente exercitam esse músculo.
Por outro lado, Kundera confronta-nos com uma questão habitual nas nossas sociedades europeias, consumistas, post-materialistas - em que a monogamia (prevista na lei) se mitiga com alguma poligamia (não assumida nem legalmente consentida, mas praticada), levando a que as pessoas se casem para manter as aparências, mas depois levem vidas duplas. E é aqui que a noção de amor só se encontra por referência à contigência, à futilidade e à gratuitidade da vida. O amor é, afinal, um acaso, senão mesmo uma busca do complexo e do múltiplo.
E é por Kundera tecer tão sábiamente esta variedade de valências da condição humana que faz dele um mestre, um psicólogo, um filósofo que demarcou, por dentro de cada um de nós - que leu o livro, ou viu o filme - ou vive a vida nutrido por essa complexidade, um Ser contaminado por aquela busca.
Eis algumas lições que guardei do filme, apuradas com umas releituras breves do livro. E agora é chegado o momento da cópia, i.é, o momento em que mergulhamos no colo do autor para sacar de lá algumas ilustrações práticas do que expendemos acima.
Cá vai:

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  • [...] "Amizade erótica". Dizia peremptóriamente às amantes: só uma relação expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos. Para se assegurar de que a amizade erótica nunca se deixaria vencer pela agressividade do amor, espaçava intencionalmente os encontros com as suas amantes permanentes. Tinha o método por perfeito e costumava apontar-lhes as vantagens, dizendo aos amigos: Há que observar a regra dos três. A mesma mulher, num espaço de tempo muito curto, nunca mais de três vezes. Anos e anos, só se deixarmos passar pelo menos três semanas entre cada encontro. Este sistema dava-lhe a possibilidade de nunca romper com as amantes e de tê-las em abundância". [...]
in Milan Kundera, Insustentável Leveza do Ser, Lx, D. Quixote, págs. 20-21
  • [...] "Com as outras mulheres nunca dormia. Quando ia a casa delas, era fácil, porque podia sair quando lhe apetecia. O caso era mais delicado quando eram elas que vinham a sua casa e lhes explicava que, depois da meia-noite, tinha de levá-las porque sofria de insónias e não conseguia dormir ao lado de outra pessoa. Esta explicação não andava longe da verdade, mas a razão principal era menos nobre e Tomas não se atrevia a confessar às companheiras que, nos momentos que se seguem ao amor, sentia um desejo imperioso de ficar sozinho. Era profundamente desagradável acordar a meio da noite ao lado de uma criatura estranha; o despertar matinal do casal causava-lhe repugnância; não tinha vontade nenhuma que o ouvissem a lavar os dentes na casa de banho e a intimidade do pequeno-almoço a dois não lhe dizia nada. (...) Sinto-me quase tentado a dizer que o que procuravam no acto sexual não era a volúpia mas o sono que se lhe segue". [..].

Solicite-se aos sociólogos das sondagens e dos estudos de opinião que façam um inquérito à sociedade portuguesa para aferir a correspondência entre o que alí é narrado e a praxis quotidiana dos hábitos sexuais dos tugas, e depois publique-se anónimamente os resultados numa vitrine alí do Campo Pequeno...

Descobrir-se-ía quem somos duma maneira dramática, porque dúplice e ambivalente. Dizemos, cínicamente, abençoados soviéticos que invadiram Praga... porque se não fosse essa invasão muito dificilmente Kundera teria escrito o romance naqueles contornos... Mas isto não passa duma boutade e duma caricatura, evidentemente. Embora nada nos impeça de pensar que poderia ter realizado outro melhor ainda, o que duvidamos. Sendo que a dúvida também se torna mais leve que o ar, por vezes faz-nos voar, outras vezes prega-nos ao chão...

  • Post dedicado aos amantes de Kundera - que passam a vida a tentar escolher entre e leveza e o peso; a luz e a sombra, o Ser e o não-Ser e acabam perdidos na multidão disforme que os tritura e só lhe devolve fardo, peso, responsabilidade, lodo...