Ódios de estimação - por VJS -
- Mais uma reflexão lúcida de VJS. O sublinhado é nosso..
Ódios de estimação (2) Vicente Jorge Silva Jornalista
Um amigo perguntou-me, há dias, se já tinha lido o livro de Carolina Salgado e se esquecera, a propósito do título do meu artigo da semana passada sobre a morte de Pinochet, outro suposto "ódio de estimação, o Alberto João Jardim". Respondi que não tinha lido e, para já, não tencionava ler o actual objecto do voyeurismo nacional. Quanto aos ódios de estimação, argumentei que associar Jardim a Pinochet me parecia deslocado e de mau gosto. Mas por falar em mau gosto, há efectivamente muitos pontos de contacto entre o que se sabe do livro de Carolina, com as suas revelações sobre os bastidores do futebol português, e o mundo político madeirense. Imagine-se só que aparece uma Carolina Salgado no Funchal. Quando li o relato de Tolentino Nóbrega no Público sobre o delirante discurso de duas horas de Jardim no encerramento do debate do Orçamento para 2007 no parlamento da Madeira, reconheci que o meu amigo tinha bons motivos para acicatar os meus ódios de estimação. De facto, até que ponto deveremos suportar e tolerar - sem nos envergonharmos de ser portugueses ou também madeirenses, como é o meu caso - a conexão rasca entre o futebol, a corrupção e a política (regional, autárquica mas também nacional) que nos atira para um esgoto a céu aberto, como nas atmosferas mais irrespiráveis do Terceiro Mundo? Porque é que havemos de admitir aberrações tão execráveis como Jardim? Não li nem me apetece ler a confissão ressabiada e vingativa da ex-namorada de Pinto da Costa. Mas se não fosse essa confissão, de um teor moral que talvez me desse vontade de vomitar, é bem provável que a justiça portuguesa não tivesse finalmente acordado para a urgência higiénica de limpar o nojo e a impunidade que brotam à sombra do futebol profissional. A verdade é que as investigações sobre o "Apito Dourado" corriam seriamente o risco de não levar a parte alguma se, por um acaso do destino, Pinto da Costa não se tivesse zangado com a rapariga que o cativara num bar de alterne. Sem isso, talvez o novo procurador-geral da República não encontrasse o pretexto necessário para dar a volta a um processo que parecia definitivamente bloqueado e nomear Maria José Morgado para seguir em frente. Nada do que os jornais e as televisões informam sobre as revelações de Carolina me parece surpreendente, nem sequer as práticas típicas da Mafia aí relatadas - e onde só faltam cadáveres para compor o quadro. Toda a gente conhece a linguagem e os métodos de aprendizes de gangsters de alguns protagonistas mais conhecidos do universo futebolístico português. O mundo subterrâneo do futebol reflecte, aliás, todo um continente submerso da vida nacional mas que floresce festivamente à luz do dia: um estado dentro do Estado cuja dimensão é muito mais tentacular do que gostaríamos, sem vergonha, de admitir num país que, apesar de tudo, se preza de ser civilizado. E onde, por exemplo, os próprios agentes da justiça não resistem às miseráveis tentações e mordomias da notoriedade que o futebol concede. Só que o futebol é um dos poucos motivos de identificação e orgulho popular (desde o nível local até ao nível da selecção) e, por isso, uma arma importante de poder político. E a triangulação entre o futebol, a construção civil e as instâncias políticas constitui o esquema mais característico do funcionamento da corrupção, através da rede das autarquias e, notoriamente, na Madeira (onde o Governo de Jardim participa como accionista de referência em múltiplas colectividades desportivas, um objecto de investigação judicial que está por desenvolver). Um dos esteios do poder de Alberto João Jardim reside, com efeito, na capacidade de arregimentar politicamente os adeptos dos clubes. Jardim fala, aliás, a típica linguagem de hooligan que caracteriza uma grande parte dos dirigentes futebolísticos e alguns autarcas mais castiços. Mas ele fala uns decibéis muito acima da média e num estilo de soba cavernícola que julga a sua impunidade garantida pela circunstância de viver rodeado de mar por todos os lados. Isso assegura-lhe ainda um estatuto de inimputável que, noutras latitudes, levaria um cidadão comum directo ao manicómio e a ter de usar colete-de-forças. Quando a cada desvario de Jardim me perguntam se ele enlouqueceu, respondo que o convívio com a demência não é, nele, uma novidade. No seu último discurso, confessou ter recomendado a Santana Lopes que declarasse a "inimputabilidade" de Sampaio, argumentando que as Forças Armadas não disparariam um único tiro para defender o Presidente. É assim que Jardim vê o mundo a partir da sua ilha e como, no espelho dos outros, ele acaba por projectar-se pateticamente a si mesmo. Insultando, praguejando, esbracejando, decretando a tontice, a paranóia e a demência alheias - mas que são afinal as dele e onde ele se reflecte. De resto, a verdade é que já tem medo de submeter-se à prova de eleições antecipadas. Merecerá sequer um ódio de estimação?
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