sexta-feira

Ver televisão - por António Vitorino -

Ver televisão
António Vitorino
Jurista Já muito se disse e escreveu sobre a conferência do Papa Bento XVI em Ratisbona. É claro para todos que o objecto da conferência do Papa não era o Islão: era sim o sempre recorrente tema do cardeal Ratzinger sobre a identidade europeia, que ele funda na convergência entre o legado do racionalismo da filosofia clássica grega e a fé cristã.
  • Essa simbiose indissolúvel, no entender do Papa, explica porque é que não é possível viver a fé sem a mediação da razão. Esta impede que a vivência mística resvale para o excesso, o fundamentalismo e a violência.Do mesmo modo, é claro que o exemplo do diálogo escolhido pelo Papa (um texto medieval onde se refere expressamente o legado religioso de Maomé) representou uma escolha que não corresponde ao pensamento do próprio Papa sobre o Islão. Embora, para efeitos demonstrativos dos excessos da vivência religiosa, todos saibamos que o Papa não precisava de ter recuado tanto no tempo nem ter ido procurar fora do próprio legado da Igreja Católica para encontrar exemplos que fundamentassem a sua tese.
  • O alvo do Papa era o ateísmo europeu, se quisermos era exactamente o extremo oposto: o racionalismo obsessivo que nega a vivência religiosa. Perante a onda de choque que, no mundo muçulmano, as palavras do Papa provocaram, o Vaticano e o próprio Bento XVI produziram, nos dias seguintes, três clarificações e um pedido de desculpas, embora subtil. Podemos interrogar-nos se uma reacção tão extensa não será, ela própria, também excessiva...Mas, mais do que debater o fundo da questão, interessa-me hoje sublinhar o enquadramento desta "crise".
  • Vários comentadores centraram a explicação do sucedido na contraposição entre um papa académico (Bento XVI) e um papa com sensibilidade político-mediática (João Paulo II). O primeiro teria, assim, dado uma prova de "falta de jeito" para lidar com a comunicação de massas, terreno de eleição do segundo.
  • Esta explicação tem uma parte de verdade. A vida pública hoje é mais dominada pela emoção do que pela razão. A empatia mediática de João Paulo II contrasta profundamente com o distanciamento frio e cerebral do seu sucessor. Onde o papa polaco fazia de cada homilia um acto de comunhão afectiva com os crentes, Bento XVI profere uma lição assente em princípios e valores abstractamente explanados, deixando aos crentes a responsabilidade de retirarem as conclusões quanto à maneira de viverem a sua fé no quotidiano.
  • Muito mais ainda quando se dirige a uma plateia universitária, na sua Baviera natal, visando combater o espírito racionalista, científico e não religioso que conhece na universidade europeia um dos principais pólos de elaboração e difusão!Mas o verdadeiro factor de diferenciação não reside nem no estilo nem nas qualidades comunicacionais do Papa. Reside sim no meio da propagação da sua palavra.
  • Na origem está em causa um ditame do mundo mediático em que vivemos: raciocínios complexos não têm lugar na comunicação instantânea de que nos alimentamos diariamente. Uma passagem de um discurso denso e extenso que tem o "picante" de referir o Islão e o seu profeta, desprovida do seu contexto e por isso marcada por um sabor actualista, tem um efeito de atrair a atenção do grande público muito maior do que uma explicação detalhada do seu alcance real.
  • Mas mais do que o relato das palavras do Papa feito pelos meios de comunicação ocidentais, o que fez a diferença desta "crise" foi a realidade comunicacional do próprio mundo muçulmano, designadamente as cadeias de televisão árabes e o seu impacto junto das respectivas populações. A natureza transnacional destes meios de comunicação produziu nos anos mais recentes um fenómeno novo que importa não menosprezar: é pela via comunicacional que se está a promover a unificação do mundo muçulmano, criando uma entidade única - o Islão - onde proliferam as divisões e os particularismos!
  • A teoria do "inimigo externo" (tão conhecida das lutas de libertação nacional como factor de unificação de entidades dispersas e parcelares) constitui uma alavanca de criação de unidade e de unificação do mundo muçulmano que os extremistas e radicais sabem usar com grande eficácia e precisão. Desta forma condicionando a margem de manobra dos próprios sectores moderados que, na avalancha comunicacional, não perderam tempo em condenar também as palavras do Papa, com base numa leitura parcelar e descontextualizada.
  • Os radicais violentos conhecem e usam em proveito próprio esses meios de comunicação, tal como o tentam fazer também (e muitas vezes com êxito) em relação aos meios de comunicação ocidentais. É tempo também de nós passarmos a perceber a realidade comunicacional no mundo árabe e a integrá-la como elemento do nosso próprio processo de decisão política. Alguém sabe, por acaso, quantos europeus vêem diariamente a Al-Jazeera?
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  • Obs: As reflexões de António Vitorino - pela sua qualidade e consistência, já passaram a integrar a agenda semanal do Macroscópio, esta é mais uma. Como o sublinhado é nosso apenas referimos aqui umas notas - corroborando e subscrevendo na íntegra aquela análise. Para dizer o seguinte: a crescente importância das motivações de tipo religioso ou transcendental surgem como as respostas que grandes grupos sociais procuram racionalizar os seus ressentimentos, incertezas, subdesenvolvimento e angústias face à armadura hiperdesenvolvida do Ocidente europeu - aqui incluindo, naturalmente, a sua mais perfeita criação - os EUA (a cabeça da hidra para aqueles fundamentalistas). Isto é um sinal maior da perda de eficácia dos valores racionalistas associados à modernização, o que terá na sua origem, para reforçar esta falência da axiologia racionalista, a incapacidade do Islão em produzir respostas convincentes para aquelas incertezas que a aplicação dos tais valores racionalistas (made in Ocidente) tão bons resultados deram neste lado do mundo, sobretudo ao nível do bem-estar e da chamada sociedade de consumo ou afluente (como cunhou o recém-falecido economista Kenneth Galbraith) e pautou o esquema de modernização industrial, social e até cultural que estruturou o Ocidente europeu - que hoje aqueles fanáticos querem destruir com bombas à cintura, nem que para isso tenham de implodir juntamente com elas, em tempo real. Daí a importância semiológica, filosófica, sociológica e até politológica de mais este artigo de António Vitorino. Lendo-o com olhos de ver - pelo menos foi essa a percepção das lentes do Macroscópio - verifica-se aquela tensão permanente, ou mesmo uma incompatibilidade entre as motições dos fundamentalismos religiosos e as garantias de resolução dos conflitos através da argumentação racional, tensão essa que creio também estar no reforço da origem deste conflito entre os dois mundos, já que essa tensão agrava a incompatibilidade e a fragilidade dos métodos de racionalização perante o irracionalismo das emoções fundamentalistas que, obviamente, elegem o método da morte colectiva para fazer política contra a tal tal cabeça da hidra. Com a agravante de que essa cabeça também tem braços e pernas - que se situam no Velho Continente, de que Espanha em 2004 - já conheceu um brutal morticínio.Mas queríamos dizer daqui a António Vitorino que houve alí uma frase bem esgalhada que ele utilizou que, quanto a nós, reflecte muito mais do que actualmente se passa entre "nós" e "eles". Essa frase é a seguinte:

(...) raciocínios complexos não têm lugar na comunicação instantânea de que nos alimentamos diariamente.

É isto que hoje se passa com as obras intelectuais de qualidade, ficam por ler porque não há quem as queira ler, exigem esforço intelectual, reflexão e meditação. Hoje secundariza-se umas págs. de Eça ao falso profundo do Paulo Coelho (já ia a dizer Jorge Coelho, ainda pior..). E o que a generalizadade das pessoas quer é uma leitura ligth que exige o menor esforço neuronal possível e o máximo de rendimento provável, daí o sucesso dessa literatura fast-food que conhecemos. Mas isso remete-nos para um problema da filosofia da linguagem cuja unidade significante já não é a palavra, é a imagem - passada na caixa negra que é a televisão, como sublinha, e bem, António Vitorino. Nós próprios estamos aqui a fazer um esforço intelectual para lá do mediano, quando poderia resumir isto em três linhas... Mas é que a linguagem não é só o instrumento do comunicar, mas também uma alavanca do pensar. Sucede, porém, que até à aparição da tv - e meados do séc. XX - ainda António Vitorino não era nascido, o tal "ver" do homem tinha-se prolongado em duas direcções: 1) ampliar o muito pequeno (com recurso ao microscópio); 2) e sabíamos também ver a linha do horinte e do zenith por recurso ao Macroscópio (nem de propósito...), e depois com o telescópio se o Macroscópio não prestasse... Veio a televisão e rebentou com esta equação. Ora o título do artigo de António Vitorino é, justamente, "Ver televisão" - sugerindo-nos que a própria televisão nos permite ver tudo sem irmos ver ao local, já que o que é visível entra em nossa casa de borla e a partir de qualquer parte do mundo. Para acelerar as coisas, sobreveio a revolução informática (com a miniaturização do chip) fez-nos mergulhar na idade cibernética - fazendo com que a realidade antes de o ser teria de passar a ser uma virtualidade. Tudo, portanto, passou a ser mediado pela imagem assim se desvalorizando a palavra e o quadro de compreensão que ela permitiria alcançar. No fundo, e cremos que aqui não danificamos a letra e o esprit da excelente reflexão de António Vitorino - a televisão passou-nos a mostrar as imagens de coisas reais que estruturam as decisões do mundo actual, por vezes no pior sentido, mas é a tv que hoje nos dá os takes e as fotografias das narrativas da guerra e da paz entre as nações, como diria Raymond Aron, o principal cronista da conjuntura do post-Guerra Fria... Quem fala hoje em Aron?!!! Mas mais: as imagens além das imagens reais confundem a nossa mente porque nos deixam com as imagens que nós realmente não vimos mas que nos atazanam os neurónios: são as imagens imaginárias resultantes da 1ª camada de imagens transmitidas pela caixa negra. Em suma: a realidade virtual é, ao mesmo tempo, a realidade e a irrealidade. E quem não consegue distinguir isto só pode resolver os diferendos à bomba, daí a importância seminal da reflexão supra. Mesmo que não saibamos quantos europeus vêem a Al-Jazeera, mas o prof. Marcelo deve saber...

  • Nota final: O Macroscópio gostaria muito de poder glozar as considerações ou mesmo artigos (agora no novo semanário Sol) de Marcelo, mas infelizmente ainda não vimos pasto reflexivo para tal, antes pelo contrário... Por isso, também não poderemos concordar com Vasco Pulido Valente quando diz que "Vitorino não vale uma unha do pé de Marcelo". Depois de ler isto interroguei-me acerca do tamanho dessa unha do pé de Marcelo... Deve ser maior do que o mar do Guincho... Ou então foi mais um exercício bacoco de Pulido Valete ao tentar explicar que o virtual, as simulações e as metáforas "unha(c)ais" alargam desmedidamente as possibilidades do real, mas não são, enquanto tais, realidade.