quinta-feira

A lição de Karl Polanyi e o affair "Compromisso Portugal"

Escrevi este texto (Um modelo de Justiça nas Relações Internacionais) - eu que não sou economista, apenas falo com eles, em 2004. Hoje decorre mais uma beatice no Convento do Beato em que um conjunto de pessoas que se intitula ilustre se organiza para influenciar a economia, modelar o poder, fazer lobi e tratar do engrandecimento do seu património. Bastaria ir ao Campo Pequeno, não seria necessário ir para o Beato, onde nem sequer há petróleo. Mas o meu ponto é este: sabemos que por lá vai desfilar a fina-flôr da gestão mais bem paga do empresariado luso-multinacional, mas ainda não vi um único desses gestores da tanga com uma referência sólida na tola. Todos pensam o mesmo pensé unique do neoliberalismo colonizador de há 10 anos sistematizado no Consenso de Washington, todos se vestem por igual, todos têm os mesmos carros, todos frequentam os mesmos restaurantes e pôem os seus filhos nas mesmas escolas e usam os mesmos perfumes e marcas de relógio. Até apetece dizer que todos têm as mesmas mulheres, que vão trocando entre si em função do ciclo económico.
  • Como ele está estagnado ficam com o que têm.. Logo, há que mudar, por isso faz-se mais um Compromisso... Mas o nosso ponto prévio remete para o perigo que existe dessas forças privadas transnacionais e os mercados financeiros que os acompanham - em dominar a economia nacional duma lógica que não beneficia o bem comum, mas apenas alguns de entre eles. No fundo, o objectivo desse bando de gestores que já não sabe o que há-de fazer ao tédio que os assombra nos seus gabinetes decorre, em boa medida, do reconhecimento da impotência das política económicas tradicionais dos Estados nacionais, daí que o objectivo do sr. Carrapatoso seja, tão somente o seguinte: fazer deslizar os níveis de argumentação de imediato do domínio da micro-gestão no âmbito interno das empresas para o (putativo) interesse da macroeconomia. Como?! Mandando umas bujardas a powerpoint sobre políticas sectoriais (Educação, Ensino, Ambiente, Reforma do Estado e mais umas tretas) por forma a que daí resulte uma redefinição das políticas económicas do Estado e da globalidade das instituições sociais e económicas nacionais.
  • No fundo, é isto que o bando de aves raras liderado pelo sr. carrapatoso deseja: estruturar a seu modo e gosto a arquitectura do sistema de políticas públicas de Portugal. Com efeito, isto é apenas uma mudança de título à clássica obsessão da competitividade industrial da década passada desenvolvida ao estilo de Miral Amaral em parceria com o economista norte-americano dos cachos (vulgo clusters) Michael Porter - que vendeu bem em Portugal e ajudou Cavaco a permanecer no poder. E o discurso determinista ou monista dessa gente que, em rigor, nem de economia sabe, é o de sustentar a ideia de que as nações ganham ou perdem na corida inexorável desencadeada pelos investimentos, financiamentos, comércio, inovações tecnológicas e bem-estar se não seguirem o figurino do pseudo-modelo económico ditado pelos amigos do sr. carrapatoso agremiados pelo tal Compromisso Portugal.
  • Este é o perigo. O perigo do neoliberalismo sem regras, puramente selvagem - um pouco ao estilo das condições de trabalho que a Vodafone dá aos seus funcionários. É este o retrato do sr. Carrapatoso: alguém que deseja a ascenção hegemónica no campo político-ideológico dos países do Norte, recuperando aqui para o Sul - a retórica apologética da globalização predatória que apresenta a competitividade no mercado mundial como o objectivo n.º 1 para as mudanças radicais nesta longa caminhada que é a modernização e o desenvolvimento da economia portuguesa.
  • O que o sr. carrapatodo desconhece, porque se calhar nunca ninguém lhe ensinou, e ele também não leu, é que só o mercado a funcionar é, por vezes, mais destruidor do que só o Estado a fazê-lo. Daí, que qualquer tentativa de imprimir à sociedade portuguesa um modelo que passe só pelas forças do mercado conduziram a sociedade portuguesa mais cedo à desgraça do que se fosse só o Estado a fazê-lo. Isto porque o sr. carrapatoso não conhece o pensamento misto, nem sequer sabem quem foi Karl Polanyi (ele só deve ter lido o velhinho Adam Smith..., e mal, talvez numa edição marada) - ou então julga que ele foi o inventor dos sistemas integrados que fazem funcionar os telemóveis.
  • O sr. carrapatoso nem sequer sabe o que é o mercado, porque se soubesse não abria a boca para dizer tanta asneira. E não me reporto aqui às suas fugas fiscais que configuram mais casos de polícia ou de tribunal. É que até o mercado, longe de ser uma evolução natural, espontânea e auto-reguilada, foi uma invenção do Estado, foi uma criação do político sobre o económico, e até a moeda foi por ele criada de par com as polícias para, desse modo, garantir a formação e continuidade do Estado numa fase em que tudo ainda era instável.
  • Ora, as propostas presentes naquele Compromisso revelam o perigo do tal monismo neoliberal de pensamento único que literalmente tritura a sociedade (especialmente, os sectores sociais mais desfavorecidos) - e também um gritante desconhecimento dos processos históricos que só é possível aceitar se reconhecermos que aquelas pessoas - que não passam dum bando de vaidosos ensimesmados com o seu próprio ego, sabem tanto de economia como Mário Soares de terrorismo e carrapatoso de sistemas integrados.
  • Quer-me parecer, em síntese, que a especialidade do sr. "voda-voda" é mais fuga aos impostos. Aqui ele mereceria não um, mas 100 doutoramentos honoris causa, pelo que aqui, o Macroscópio, desde já (irónicamente, claro está!!!), se digna recomendá-lo ao sr. Prof. Cavaco Silva que lhe o atribua no próximo 10 de Junho. Embora neste ponto continuemos a pensar como o Jumento, que o PR se deveria efectivamente ter informado, designadamente através do seu Chefe da Casa Civil, um técnico prestigiado, experiente o politicamente competente, Nunes Liberato, acerca de quem é, efectivamente, esse tal Carrapatoso, e qual é o seu currículo em matéria de contribuições fiscais. Assim, fica sempre a dúvida de que para o PR uns são filhos e os outros são... E isso nem é bom para o PR - que recebe quem não deve, nem para o País cuja sociedade se sente tratada de forma discriccionária pelo mais alto majistrado da nação.
  • Depois desta extensa nota prévia acerca da total inutilidade do Compromisso Portugal, vamos ao que interessa:

Um modelo de justiça nas Relações Internacionais O mundo globalizado gera duas tendências contraditórias: o mercado global abre perspectivas de uma riqueza sem precedentes; mas também gera vulnerabilidades patentes no gap entre ricos e pobres dentro de cada sociedade. A poderosa vitrine que é a Net amplifica tudo isso à velocidade da luz. Nesta bifurcação, os Estados e as empresas mais desenvolvidos integram-se na economia global; os restantes são excluídos, apanhando os salários e os padrões de vida mais baixos. Temos, pois, um mundo dual: elites cosmopolitas a acumular vantagens; e “multidões” de pobres dobrando esquinas nas periferias das urbes europeias.

Por isso, o ataque à globalização sofre dum crescente radicalismo económico, maxime em países onde a elite governante é pequena e as desigualdades aumentam. O perigo reside na formação duma classe média-baixa permanente em todo o mundo, tornando difícil o consenso político para as reformas necessárias ao desenvolvimento. O desafio está em mitigar crescimento económico com visão política para encontrar alternativas à lógica do “colete negro” neoliberal. Prevenindo a paralisia dos 3 motores da economia mundial (EUA/Europa/Ásia) que hoje ameaça destruir as instituições democráticas mercê de pressões políticas globais.

A finalidade é induzir justiça no sistema de relações internacionais/SRI. Mas isso não se consegue só com o Estado, para muitos a fonte do mal. Se o Estado substituísse a política, a paz e a justiça - tudo seria mais fácil na dinâmica dos povos. Porventura, o mais difícil é reformar os Estados que vivem só dos seus recursos naturais, desamarrá-los desse dinheiro fácil que faz dos petro-Estados autocracias.

Em 1944 Polanyi (que Soros copia sem citar) previu a queda das 4 instituições do Ocidente: 1) o balance of power; 2) o padrão-ouro; 3) a auto-regulação do mercado; 4) e o Estado liberal. Duas instituições são económicas, a outras duas são políticas.

Eis a utopia que ruiu no séc. XX. Será que hoje o Estado liberal pode regular os mercados? Neutralizar o terrorismo por recurso ao balance of power? Não. O mundo mudou. Hoje os mercados (desregulados) agridem as sociedades, telecomandam os Estados. Daí a dialéctica do duplo movimento de Polanyi: 1) libertação das forças de mercado do controlo estatal; 2) e o refluxo a esse controlo pelo Estado, para aliviar os efeitos corrosivos do mercado nas sociedades.

Se aplicarmos a lição de Polanyi ao mundo actual, constatamos que as forças (anónimas) do mercado alimentam actividades especulativas e ilícitas associadas ao crime organizado, financiamento do terrorismo, branqueamento de capitais bloqueando as reformas no sistema e inibindo a justiça nas RI.

E se repetirmos o exercício com o modelo do Banco Mundial/BM aplicado ao Chade (rico em petróleo), na África Central? Só que aí as multinacionais condicionaram o seu investimento local à erradicação da (crónica) instabilidade política. O BM aceitou “abençoar” um projecto, emprestando dinheiro ao governo para se associar ao consórcio internacional (Exxon-Mobil) para extrair petróleo. Mas colocou a seguinte condição: o Parlamento chadiano teria de aprovar uma lei garantindo que 80% das receitas do ouro negro seriam investidas em saúde, educação e infra-estruturas rurais; 5% para beneficiar populações vizinhas; 10% ficariam cativos num fundo para prover às futuras gerações; e os 5% remanescentes seriam gastos como o governo aprouvesse.

Para que o modelo funcionasse o BM exigiu que todas as receitas fossem depositadas numa conta off shore gerida por uma comissão independente de chadianos ilustres. A simbiose da economia com a política pode rentabilizar o modelo, que poderá ser reproduzido em qualquer ponto do mundo e servir de alternativa à aprovação dos (orçamentos) europeus que desrespeitam o PEC. Poderá a “má” Europa aprender com a “boa” África?

  • Reflexão extraída do nosso livro - Em Busca da Globalização Feliz, pág. 200-202