Refundar a direita ou a esquerda? - por Francisco Sarsfield Cabral
Nota prévia do Macroscópio: era para citar apenas um fragmento, mas confessamos aqui que o nosso amigo Francisco está cada vez mais lúcido, é daqueles veteranos que não "sai de moda" - como no outro dia lhe tive oportunidade de dizer, e esta reflexão de sociologia política e económica sinaliza-o de forma eficiente. Confesso que apreciei aquela nota de carácter culturalista com recurso aos romances de C. Dickens e o modo como enquadrou os desafios da globalização para encostar a esquerda à parede. Esquerda..., qual esquerda? Vale a pena ler na íntegra, aqui estão muitas lições e inúmeros desafios. Mas será que ele leu uma discussão que aqui há dias o Jumento, o Tomar Partido e muitos outros blogs de excepcional qualidade (recenciados por Jorge Ferreira) levaram a cabo na net sobre esse tema? Certamente que Não, sim, talvez!!! Vá lá Francisco, não se iniba... É que a blogosfera é muita rápida a pensar e a escrever e também tem dado os seus contributos, nem sempre reconhecidos - é certo. Mas este é um texto que devia chegar à mesa de cabeceira de José Sócrates e também não deixar de ser lido pelos líderes da oposição e, porque não, pelos sindicalistas e empresários. Sempre seria uma maneira de se cultivarem, com Dickens...
- O sublinhado é nosso, e esta bolinha preta também..
Regressou no Verão o debate sobre a refundação da direita em Portugal. O tema é velho: diz-se há muito que meio século de ditadura conservadora, a que pôs fim uma revolução militar hegemonizada pela esquerda, obrigou a direita portuguesa a um low profile.
É um debate bizarro. Primeiro porque, como explicou Rui Ramos (Público, 20-9-06), a clandestinidade ideológica favorece os actuais partidos de direita, pois lhes proporciona flexibilidade táctica. "À direita haveria apenas bom senso."
Depois, porque quem está verdadeiramente sem norte e a precisar de refundação não é a direita, mas sim a esquerda.
Ainda antes do colapso do comunismo, a direita teve uma enorme vitória com M. Thatcher e R. Reagan, que tornaram obsoletas muitas posições clássicas da esquerda - desde as nacionalizações até à subordinação aos sindicatos. Tal vitória deslocou para a direita o centro da discussão política.
Blair não enjeitou o essencial da herança de Thatcher, nem Clinton o de Reagan. Decerto que, após a insensatez neoconservadora que Bush filho acolheu, nos EUA o pêndulo está agora claramente a oscilar no outro sentido. O populismo de esquerda campeia no Partido Democrático. Mas ninguém espera um regresso à esquerda colectivista.
Contra o que muitos esperavam, o colapso do comunismo não veio abrir terreno para a afirmação da esquerda socialista democrática. Afinal, "com o marxismo desapareceram não apenas os disfuncionais regimes comunistas e os seus iludidos apologistas no Ocidente, mas também todo o esquema de pressupostos, categorias e explicações criado ao longo dos últimos 150 anos e que considerávamos de esquerda" (Tony Judt, The New York Review, 21-9-06). Assim, a generalidade dos actuais Governos socialistas, de Blair a Sócrates passando por Lula ou Zapatero, tem seguido políticas económicas de direita. Alguns socialistas, reclamando-se de uma esquerda dita moderna, tentam marcar a diferença face à direita na área dos "temas fracturantes": aborto, uniões homossexuais, etc. Mas é curto, dadas as questões que a globalização e as novas tecnologias trouxeram.
A globalização económica tem provocado reacções violentas com grande expressão mediática. Só que aí se misturam esquerdistas desprovidos de qualquer alternativa realista ao capitalismo global com reaccionários proteccionistas que querem travar importações dos países pobres. É folclore a mais e pensamento político e económico a menos. Daí a inoperância prática dos "alter-mundialistas".
O capitalismo global conseguiu resultados notáveis ao tirar da miséria extrema centenas de milhões de pessoas (na China, na Índia, etc.) e ao promover um forte crescimento económico em vastas zonas do globo até há pouco estagnadas no subdesenvolvimento (até de África vêm agora sinais de esperança). Mas há o reverso da medalha.
Nada que surpreenda. A revolução industrial iniciada na Grã-Bretanha há dois séculos abriu a porta a uma enorme prosperidade. Mas teve tremendos custos sociais, com a proletarização de milhões de camponeses, que abandonaram a agricultura para irem trabalhar nas fábricas em condições arrepiantes. Basta ler os romances de Charles Dickens.
Hoje, a globalização e a generalização das novas tecnologias, além de reduzirem a fome no mundo, aumentam sem dúvida a prosperidade geral. Mas geram novos custos de transição e novos sacrificados pelo progresso, problemas para os quais a esquerda ainda não tem resposta. O regresso ao agravamento das desigualdades é um desses custos. Depois da democratização económica promovida nos países desenvolvidos pelo capitalismo industrial até por volta de 1970, as disparidades de riqueza voltaram em força. E, com elas, regressou também uma estratificação social que lembra o mundo pré-industrial.
A entrada no mercado da China e da Índia colocou centenas de milhões de trabalhadores em competição, travando a subida de salários dos trabalhadores nos países ricos. E estes, ao contrário dos empresários e do capital, dificilmente se podem deslocar. A globalização alterou a balança entre capital e trabalho, em prejuízo do segundo.
Além disso, um capitalismo global sem enquadramento político mina a própria democracia, pois os Estados têm cada vez menos poder perante quem manda na economia.
Não basta berrar contra a globalização, aliás inevitável e positiva. É preciso encontrar soluções viáveis para estes problemas. Onde está a esquerda?
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