sábado

Salazar, Marcello Cateano e Mário Só-ares

- Num texto bem esgalhado e incisivo alí do Memórias Futuras - de Joaquim Paula de Matos - meu tio - mas de momento vou esquecer essa condição de sangue, que, aliás, nunca recordo quando escrevo e tento pensar isentamente os fenómenos socio-políticos do nosso tempo, ele deixa-nos um texto delicioso que segue infra. Mas o seu requinte vai ao ponto de pôr uma analfabeta a tecer considerações pessoais e políticas sobre Salazar e Marcello (mas o objectivo da narrativa era desacreditar este, um homem superiormente inteligente) - para concluir que, no fundo, a essência do poder em Portugal - durante quase meio século - se confundia na pessoa do próprio António de Oliveira Salazar - que mandava absolutamente no país real e no país formal.
- No fundo, o que Joaquim Paula de Matos diz, invectivando um pouco Marcello Caetano, é que até uma analfabeta rural percebeu que "esse novo Salazar" (leia-se Marcello Caetano) era de qualidade inferior e, assim, jamais conseguiria segurar as pontas do regime e evitar a mudança política que veio com a revolução de Abril que pôs termo (e bem) a uma guerra ultramarina estúpida para ambos os lados: metrópole e colónias.
- E aqui o meu Tio dá cartas - porque, quer como oficial superior que cumpriu serviço militar em Angola e depois como quadro superior que trabalhou em Moçambique, onde também desempenhou funções de docentes universitário, acumulou uma larga experiência com quem muito tenho aprendido. E parece que que era muito querido pelos seus alunos - até porque defendia uma posição política próxima da deles (logo, distante da de Salazar e de Marcello) - por isso também se compreende este seu texto, se bem que servindo-se da "muleta intelectual" e metafísica da velha rural e analfabeta que procurava desacreditar Caetano...
- Mas melhor do que o nosso comentário, que pode estar enviezado, talvez valha a pena ver parte do texto que Joaquim Paula de Matos nos deixa:

Obs:

  • - É óbvio que todos nós em função da nossa educação, formação intelectual, época em que nascemos, valores que assimilámos no decurso da vida posicionamo-nos de diferente modo perante a sociedade e a política. E não estando ideológicamente distante dele, creio que à época Marcello fez o que pode porque além de ser um homem nascido no regime, logo visceral e estruturalmente crescido em ditadura e educado nos valores da disciplina, da ordem e da obediência, os militares ultras também não o deixaram progredir mais nas reformas, pelo que o resultado só poderia ter sido aquele que foi: uma Primavera frouxa que abriu caminho à sua própria queda e, consequentemente, democratização do regime - à qual estava ligado - umbilicalmente - a própria descolonização das colónias africanas - que depois das Independências entraram em guerra civil seguido de internacionalização da guerra com os EUA a apoiar a UNITA de Savimbi (em Angola) e a ex-URSS a fornecer armas e apoio técnico, financeiro e enquadramento ideológico ao MPLA - ainda liderado por um dos maiores corruptos (e milionários) do mundo, José Eduardo dos Santos. Esta bipolarização da guerra, ou melhor, americanização e sovietização do conflito africano, generalizou-se a todas as práticas políticas e sectores no seio da Guerra Fria - com perdas elevadas para as populações e respectivas economias.

Mas o ponto que aqui quero salientar, à semelhança da estorieta que o meu Tio contou através da tirada da velhota analfabeta que funcionou como uma diminuição do papel pessoal e político de Marcello Caetano na substituição de Salazar, é o seguinte:

  • Trata-se de mais uma estorieta, desta feita de sinal contrário aquela que Joaquim Paula de Matos conta no seu Memórias Futuras. E prende-se com uma visita oficial que Mário Soares - já na qualidade de Primeiro-Ministro, faz ao Brasil, na companhia de uma extensa comitiva - de ministros, gestores, intelectuais e jornalistas. Essa visita destinava-se a recuperar a confiança do Governo brasileiro, ainda magoado com os actos hostis ao tempo do gonçalvismo, e a obter investimentos de vária ordem em Portugal, especialmente nas áreas com ligações à colónia portuguesa. Certo foi que durante essa visita oficial Marcello Caetano estava recolhido à sua vida privada e académica - na Universidade Gama Filho que amavelmente o acolheu, já que Marcello era um excepcional professor de Direito e teria lugar em qualquer parte do mundo, o mesmo já não se poderia de outros, mesmo de democratas - que hoje, como ele diz - e recorda Vasco Pulido Valente - nem para criados de quarto serviam... Mas o ponto, apenas para fazer o paralelo com a história da velhinha analfabeta sobre a Primavera marcelista, e mesmo sopesando os erros, as raivas e as frustrações de Caetano (recordamos que estava em causa a sua própria sobrevivência - pessoal e política!!!) por não se ver obedecido imediatamente antes da entrega do poder a Spínola, - consta de uma história que passo a contar: e resulta duma vontade de Mário Soares - em querer granjear as simpatias das pessoas muito rápidamente, ora foi nessa ânsia de capitalizar politicamente essas simpatias - que foi um traço constante da sua personalidade ao longo da vida - que Soares caíra em deslizes imperdoáveis. Certa vez, quando saía do Instituto Histórico e Geográfico, entrou num bar cujo dono lhe pareceu português e, voltando-se para os jornalistas, disse em voz alta: Vou abraçar aqui o Manuel, meu patrício". Ao que o outro respondeu no sotaque próprio, de que se chama Pablo e era galego. Soares ficou desconcertado perante a gaffe que cometera. E logo um amigo contou a história a Marcello Caetano que valorou do seguinte modo: Pouca sorte!!! Com tantos portugueses estabelecidos por aí, o Mário Soares foi logo entrar na casa errada.

- Apesar de tudo, acho este comentário mais simbólico e mais rico do que o da velhinha acerca da Primavera marcelista, embora os dois tenham lugar na história - que é sempre feita de tempos e de cosmovisões diferentes. E o mais grave - é que hoje - quase meio século passado sobre esses episódios que fronteiram com o ridículo - estamos todos bem mais velhos e prontos a reconhecer que o nosso querido Portugal (como diria Eça...) - mesmo sem colónias e sem Império - não está muito melhor, antes pelo contrário...

- Até apetece pedir ao meu Tio que ele reecontre a (tal) velhinha por forma a perguntar-lhe o que pensa de Sócrates. Como hoje o povo é sereno, aguardemos, pois...

- De preferência, antes dele se pirar para o Brasil...