terça-feira

Blogosfera entra no mundo político: o caso Trent Lott

  • Por causa dum silêncio estranho no mundo dos jornais e dos operadores de tv nos dias após às declarações de Trent Lott, em 2002, no decurso duma festa para celebrar o 100.º aniversário do seu companheiro do Partido Republicano, o senador Strom Thurmond, aquele foi imbuído pela nostalgia e fez umas declarações tão surpreendente quanto perigosas. Ou seja, Trent Lott, que então era líder da maioria do Senado dos EUA, evocou a campanha de Strom Thurmond em 1948, durante a qual ele tinha advogado a manutenção da segregação racial ("bem" conhecida na África do Sul como apartheid). E depois ainda acrescentou que os EUA - enquanto nação - estaria hoje melhor se Thurmond tivesse ganho essa compita eleitoral meio século antes. Estas são as declarações, estes foram os factos.
  • Vejamos agora como isto se tornou um absurdo e que papel teve a blogosfera nesse absurdo. Com efeito, aquelas declarações são, de per se, lamentáveis, pois instigam à discriminação e ao racismo, ultrajam toda uma nação e os princípios e os ideais que ela defende, tanto mais a América - símbolo da Liberdade - que até lá tem uma enorme estatátua oferecida pela França no séc. XVIII.
  • Mas a estranhesa do caso resultou da falta de interesse ou atenção que a generalidade da imprensa escrita e estações de tv atribuiu a esse lamentável episódio. Ao que se sabe apenas o ABC referiu o facto e o Washington Post publicou um pequeno artigo e fechou a questão. E foi esse o fraco eco dos media perante umas declarações tão graves - que jamais poderiam passar em claro, i.é, sem consequências públicas de maior.
  • Tudo findaria aí se - há sempre um "But" - a blogosfera não tivesse repescado o assunto e por mail, via blogs, jornais online, tivessem conferido uma nova projecção mais mediática ao caso, como à partida se suponha por parte da mediasfera e atendendo à natureza racista daquelas declarações do senador Trent Lott - que era ao tempo, sublinho, líder da maioria do Senado dos EUA, um dos postos mais importantes e influentes no aparelho de decisão política norte-americano.
  • A primeira consequência deste paradigmático caso foi que a blogosfera conseguiu manter viva uma chama que os media tradicionais nem sequer quiseram acender. Mas o que é facto é que a história daquela celebração do centenário de Thurmond viveu para além do momento que lhe deu origem, para despeito dos próprios profissionais tradicionais da informação que decidiram (editorialmente) encerrar o assunto no momento em que ele ocorreu. Como quem quer esconder algo que tem um rabo enorme...
  • Porém, inúmeros foram os bloggers que protestaram pelo teor daquelas racistas declarações, e alguns revelaram-se tão ou mais indignados pela própria falta de atenção que era suposto os media darem ao assunto. Foi então, por pressão dos bloggers, que a história inundou os meios de comunicação social dos EUA, e foi aí que G.W.Bush se viu forçado a repreender o autor daquelas lamentáveis declarações, Trent Lott, que era, curiosamente, seu aliado no Congresso. Sucede que a pressão aumentou desmesuradamente e o próprio Trent Lott se demitiu do post que ocupava, para descanso de todos.
  • Vejamos agora as lições que daqui podemos extrair da perspectiva da blogosfera:
  • 1. Este talvez tenha sido o 1º caso de dimensão política mediática em que foi a própria blogosfera que impulsionou a dinâmica dos acontecimentos, os quais levaram àquela demissão;
  • 2. Doravante, políticos, agentes sociais, organizações religiosas, as pessoas, os empresários - todos passaram a ter um status e uma autoridade próprias, diferente da que se vivia no mundo pré-blogosfera;
  • 3. As pressões, por outro lado, passaram a irromper da base para o topo já sem a mediação e os filtros dos media clássicos. Era como se cada um de nós, a partir de um dado momento, disséssemos: doravante eu falo com Deus - dispenso a mediação dos vigários - esses intermediários em que deixámos de confiar na Terra- rompendo-se, desse modo, as velhas hierarquias impostas pelos meios de comunicação tradicionais e do qual emanava grande parte da sua autoridade e arrogância;
  • 4. Passou a operar não já o modelo de comunicação da Idade industrial mas um modelo de fluxos permanentes, crescentes se bem que não lineares - que podem desequilibrar, a qualquer momento, o sentido da Opinião pública internacional;
  • 5. Este caso fez-nos compreender também como as fontes de informação deixaram de ser geridas exclusivamente na óptica dos media tradicionais, subtraindo-lhes o poder de defeinir, a cada momento, o agenda-setting do dia, da semana ou do mês. Doravante, a fixação desse agenda-setting é determinado em conjunto - se bem que de forma não consentida - pelo conjunto dos operadores no Rizoma, o que implica a contemplação do crescente papel da blogosfera no agendamento da informação no interior das nações e na escala ou na esfera da globalidade;
  • 6. Qualquer cidadão informado com um mínimo de talento pode aceder às fontes e definir - também ele - parte desse agenda-setting com muito maior rapidez - quebrando-se, assim, o velho problema das fugas de informação que em Portugal é o prato do dia, especialmente ao nível da Procuradoria-Geral da República - cujo PR ainda mantém o respectivo titular, conhecido pela Pantera cor de Rosa, com a agravante de que o líder do PsD - não obstante tantos e tantos dislates, erros, omisssões e pura incompetência por parte do sr. Xouto Moura - ainda faça elogios à forma como tem desenvolvido as suas funções de Procurador. Num país civilizado e com common sense este senhor já estava demitido há pelo menos dois anos..., ou então ter-se-ía demitido, o que revelaria mais bom senso;
  • 7. O perigo de tudo isto remete para a própria blogosfera que, muitas vezes, é uma força terrível, como se fosse guiada por uma multidão irracional e desgovernada. O que nos coloca uma questão séria: e se a blogosfera, na avaliação dum determinado caso, comete erros de avaliação?! Esses erros tendem a projectar-se em catadupa na Rede, de forma imparável..., como uma bola de neve. Aqui o problema não é só a assunção desse erro, mas o facto de quem se sente com a força pode não querer (mais) reconhecer que está errado. E isto também comporta riscos. Sabemos que por vezes temos a força da razão, outras vezes, mais graves, só temos a razão da força - e é isso que também na blogosfera terá de ser regulado, limitado, se possível, codificado. E o tal OBSERVATÓRIO DA BLOGOSFERA poderia ser um bom pontapé de saída para a institucionalização desse código de conduta cooperativo entre todos os operadores da informação e da análise em Portugal.
Eis a lição que aqui tiramos do episódio Trent Lott.
  • Post dedicado a todos os bloggers e jornalistas conscienciosos do trabalho que fazem. A todos aqueles, afinal, que sabem existir uma diferente crucial entre: ter a força da razão e dispôr, arbitráriaramente, da razão da força.